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O que é um leitor
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

O que é um leitor

É leitor quem lê dez páginas de um romance de 150? Ou quem se embrenha num quadrinho?
Tipo Crônica
Fotografia frontal de uma estante cheia de livros. (Foto: Reprodução: Unsplash/@alfonsmc10)
Foto: Reprodução: Unsplash/@alfonsmc10 Fotografia frontal de uma estante cheia de livros.

O que é um leitor, afinal?

Em termos de pesquisa, tal como a "Retratos de Leitura", esse gesto classificatório que abarca o país para definir uma categoria em torno da qual não há consenso à vista seja na literatura, seja na sociologia ou noutras ciências vizinhas.

Leitor é quem lê, mas quem lê é sempre leitor? Digo, o ato da leitura pressupõe algo mais que a leitura episódica de um trecho avulso de livro no curso de um ano, um período por si arbitrário e injustificável?

É leitor quem lê dez páginas de um romance de 150? Ou quem se embrenha num quadrinho? Ou quem sempre desiste na metade da obra, não importe qual seja o livro?

Ler é obrigatoriamente ler literatura? Ler o jornal é uma modalidade de leitura válida para efeito de inclusão no rol de leitores dignos desse nome?

Ler placas nas ruas, anúncios? Ler as pichações, as inscrições nas portas de banheiros, os recados em bancos de praças, os verbetes que pululam nas propagandas?

Ler os spans que se intrometem entre um vídeo e outro, os manuais de eletrônicos, os cardápios virtuais que se revelam apenas mediante o procedimento de captura de um QR code?

Ler as recomendações da IA, os disparos de torpedo que chegam pelo celular, os golpes simulados, os apelos do banco para que ceda ao novo empréstimo, a falsa simpatia da assistente (sempre voz feminina) da empresa cujos funcionários de carne e osso nunca estão disponíveis?

Ler as legendas de um vídeo também é já leitura?

E quanto às cifras escritas que pipocam no WhatsApp, aquelas pescadas de esguelha na tela de um estranho, enviadas por engano, apagadas para todos, vistas de soslaio dentro do ônibus, uma briga de casal ou declarações mais calorosas, juras de amor abreviadas para signos e emojis?

Ler a imagem compartilhada, ler o meme ou a corrente que viralizou, o exposed do artista que publicou a foto do feto abortado da esposa à procura de mais engajamento - tudo isso é leitura, certo?

Eu sinto que é, embora não esteja totalmente seguro quanto a isso, o que me leva a perguntar se não seriam muito frouxos todos esses critérios que se prestam a recensear os parâmetros do mundo do livro no Brasil e em qualquer parte do mundo.

Penso que sim, penso que não. Penso que sim porque tendo a supor - e de fato é uma tendência - que o exercício de ler é hoje mais presente e abrangente do que era talvez duas ou três décadas atrás, quando já éramos um país de não-leitores por excelência e o regime audiovisual era a métrica.

Penso que não porque, por outro lado, ainda que tudo seja leitura, e os principais comandos da vida contemporânea se baseiem na capacidade de interpretar símbolos gráficos, há um tipo de leitura que resulta em deslocamento de si.

Um registro que se dá na contramão da inclinação a imaginar o mundo mais chapado, branco no preto, esgotado etc. Isso é literatura, basicamente, deparar-se com um outro irredutível a si, com abismos e fantasmas, com o incômodo e o insatisfatório.

Ler seria então afundar-se nesse universo mais nuançado, sem faixas-guia nem corrimão, um espaço dentro do qual a experiência se constitui no ato - nem antes, nem depois?

Ou ler é desde agora a confirmação das próprias crenças e valores, a gincana prazerosa de referências autoevidentes e de métodos exibidos com didatismo e conclusões já sabidas?

Foto do Henrique Araújo

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