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Inimigos do silêncio
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Inimigos do silêncio

Talvez haja mais de uma hipótese para explicar a ojeriza do cearense ao silêncio, esse vezo estridente que se impõe sempre que o gentio se vê confrontado com uma situação diante da qual sente a comichão de vocalizar ou consumir ruídos em escala acima do normal
Tipo Crônica
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 16-11-2024: Ação do Shalom com pessoas em situação na rua, com atendimentos médicos, serviços de podologia, barbearia, jurídicos, sociais, de psicologia e um almoço festivo para os atendidos, na Praça da Igreja do Carmo.. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 16-11-2024: Ação do Shalom com pessoas em situação na rua, com atendimentos médicos, serviços de podologia, barbearia, jurídicos, sociais, de psicologia e um almoço festivo para os atendidos, na Praça da Igreja do Carmo.. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Talvez haja mais de uma hipótese para explicar a ojeriza do cearense ao silêncio, esse vezo estridente que se impõe sempre que o gentio se vê confrontado com uma situação diante da qual sente a comichão de vocalizar ou consumir ruídos em escala acima do normal.

Me refiro a esse conforto oriundo da ausência, total ou parcial, de fontes de propagação de som, condição hoje rara e que faz com que todo ambiente mergulhe num clima placentário no qual, uma vez imersos, nos reconectamos com sabe-se lá que forças divinas ou carnais.

Mas com o nativo dá-se o contrário, ou seja, o bicho local, tão logo se encontre numa sala ou na praia ou dentro de ônibus nos quais não se ouça um pio de vivente, trata de imediato de desfazer esse estado de bem-estar.

Seja com celular sem fone, caixinha ou com uma TV ligada no meio do salão do restaurante pequeno, de proporções que desencorajariam qualquer um a levantar a voz, esse Grinch da mansidão não se vexa de alardear o subproduto de suas interações sonoras, para ele sempre tão interessantes que o levam a desejar dividi-las com os demais.

Ou, quase sempre pior, a democratizar seu gosto musical, agindo como um missionário empenhadíssimo na tarefa descivilizatória de catequizar a audiência de incréus com seu deselegante apreço pelo barulho em grau pornográfico.

É assim em todos os ambientes e mesmo em todas as classes. Da sala do dentista mais requisitado à livraria do shopping refinado - um contrassenso -, da barraca de praia ao cinema cujo ingresso custa R$ 30, a todo momento se flagra esse ato desinibido e ruidoso, o gesto já corriqueiro e desavergonhado do qual todos se tornam reféns.

Eis, então, a quietude ferida de morte. Implodido o rico e necessário silêncio no meio da exibição de um filme, por exemplo, situação na qual, não faz tanto tempo, era conduta socialmente compulsória guardar-se de boca fechada, sendo o oposto um motivo para reprimenda severa, quando não para expulsão a pontapés, sem chances de defesa.

Não agora. A norma tornou-se o seu avesso, isto é, tagarelar antes, durante e depois da reprodução de qualquer obra, drama ou comédia, guerra ou ficção. E não apenas palrear à vontade, mas batucar incontinente na tela do smartphone, lançando jatos de luminosidade nas horas mais impróprias, enquanto no aparelho pipocam os estalidos desesperados de notificação.

É tentador supor que tudo isso é apenas sinal de mudança dos tempos. Nele, toda calmaria e mudez, como sabemos, é economicamente inferior ao imperativo de produzir conteúdo, mesmo que passivamente. Algo semelhante se registra com o sono, última fronteira ainda imune à colonização das redes e do capitalismo de plataforma. Calados ou dormindo, somos inservíveis a essa maquinaria.

Mas talvez exista algo mais aí. Quem sabe o cearense não seja, desde o nascimento, um tipo biologicamente predisposto à barbárie sonora, mimetizando de bom grado modos despropositados e assimilando novidades (JBLs na padaria) com o mesmo entusiasmo infantil com que rapidamente emula os sotaques de outros estados tão logo coloque os pés fora do próprio quintal.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

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