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A mesa dos pais, a mesa das mães
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

A mesa dos pais, a mesa das mães

Tenho de admitir que não gosto do formato, ou seja, da "hemisferização" das relações entre pais e mães que rege e organiza os espaços e festas/encontros a partir do momento em que temos filhas
Tipo Crônica
2212gualter.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2212gualter.jpg

De repente, num desses aniversários de criança tão frequentes quando se tem filhos pequenos, me vi sem querer sentado na mesa dos pais, enquanto às minhas costas estava a das mães, reunidas em torno de pratinhos de salgadinhos.

Na dos pais se fazia o mesmo, comia-se e bebia-se à vontade, respeitando-se essa divisão invisível que distingue socialmente dois mundos, um lá e um cá que não se misturam, um dentro e um fora que só se conectam na chegada e na partida.

Tenho de admitir que não gosto do formato, ou seja, da "hemisferização" das relações entre pais e mães que rege e organiza os espaços e festas/encontros a partir do momento em que temos filhas - e mesmo quando não as temos, a bem da verdade, porque o imperativo da regra se consolida aos poucos, por acúmulo.

Mais curioso: ninguém institui previamente essa distribuição de papéis, ninguém outorga posições nem orienta as métricas de ocupação do ambiente. Os papis e as mamis tacitamente se acomodam de tal maneira que eles ficam de um lado e elas, do outro, sem mistura nem tensão de qualquer tipo, mantendo-se entre si contatos ocasionais (os visíveis, pelo menos), respeitosos e ciosos de um certo pudor dominante, como se se conservassem leis não escritas cujas fronteiras convém não violar, seja por uma razão ou por outra.

Me pergunto o que esse desenho escamoteia, se se trata apenas de uma economia doméstica que reproduz a lógica das tarefas na qual as esferas do macho e da fêmea são imiscíveis; ou se há mais para ocultar nessa disposição dual, erguida intuitivamente tão logo os casais se põem a entrar e vão se instalando, primeiro uns secundando os outros, como sói acontecer heteronormativamente.

Em seguida, à medida que a noite ou o dia avançam, os semelhantes acabam por se assemelharem mais ainda, com os paizinhos puxando papo com os paizinhos nos quais se veem mais fielmente representados; e as mãezinhas com as mãezinhas em quem se reconhecem, exceção feita apenas a um ou outro parente avulso cujas coordenadas estejam embaralhadas em meio a esse bailado de cartas marcadas.

Tudo isso, claro, incide também sobre forma e conteúdo, isto é, sobre como e o que se discute e a que altura, já que os temas - mais importante, a modulação - das conversas naturalmente variam entre mesas de homens e mulheres, sem que haja nisso qualquer sexismo.

Entre eles, o futebol e seja lá que espécie de assunto de homem for o do momento, como foi nesse dia, do qual admito não lembrar porque estava dividido entre as duas mesas, habitante de um espaço liminar que não me autorizava participar nem de uma interlocução, tampouco de outra.

Para elas, os assuntos em torno dos quais as mulheres se enredam sem especificidade, ideias e preocupações que englobam múltiplos campos, da saúde ao trabalho, da profissão à escola, abarcando um sem número de tópicos que faz o tabuleiro masculino parecer sempre mais chapado e bidimensional.

 

Foto do Henrique Araújo

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