Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Foto: AURELIO ALVES
ATACAREJO oferece mais descontos na compra em quantidade, o que pode não ser viável para baixa renda
Gosto de como soa "atacarejo", de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico-sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo.
Macro/micro, universal/local, natureza/cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade mesmerizante de síntese, sua captura do "zeitgeist" não apenas provinciano, mas global, numa mostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo - ou seria o contrário?
Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância poético-sonora da palavra, pela qual sempre me senti atraído desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor - para Barthes a amorosidade não é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios?
Mas é quase certo que Barthes, por limitação cronológica e de oportunidade, não conhecesse as doçuras do atacarejo, sobretudo com essa entonação anasalada, nativista, mais soprada que pronunciada. Uma chispa vocabular que apenas o trabalho de ourivesaria linguística seria capaz de produzir.
Dádiva do prazer da fala, basta experimentarem cada sílaba separadamente, como uma seriguela: a-ta-ca-re-jo, tal como recomendaria talvez Nabokov, mas tendo outro objeto de paixão na cabeça que não essa vastidão de signos comerciais que resultam numa outra, esta de pronúncia sui generis.
Atacarejo sumariza, então, esse exercício da língua, que se contrai e se expande em sístole e diástole.
Ativá-lo é acionar uma série de mecanismos afetivos que se movimentam sempre que a ideia se presentifica, abrindo-se esse campo do real e nele os amplos corredores pelos quais desfilam carrinhos super-dotados repletos de produtos comprados em quantidade pré-apocalíptica.
Fardos de arroz, montanhas de cuscuz, pilhas de café (isso muito antigamente, claro, quando o café custava menos que um carro popular), tudo acomodado zelosamente no mais fundo do gradeado do carrinho, camadas e mais camadas de víveres para a família local passar o mês. A isso se chamava fazer as compras, um evento canônico no universo doméstico.
Menos por seus significados e mais pelas características do lugar, de seus espaços liminares, das filas e das promoções, dos anúncios e dos informes publicitários emitidos nos sistemas de som desse híbrido de pequeno com grande, de São Luiz com Ceasa, de Iguatemi com Centro Fashion.
O atacarejo é, desse modo, uma unidade autônoma que remete a tudo e a nada, ao cearense e ao cidadão de qualquer país do mundo, ao existente e ao inexistente, um plurilocal convidando ao gasto imediatista do consumo e ao deambular sem destino pelas gôndolas, em descompromissada fruição dominical.
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