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Uma linhagem de sorte
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Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Uma linhagem de sorte

Os pais médicos ou advogados, não recordo, e, antes deles, a geração mais antiga, de modo a se criar uma cadeia sucessória ao fim da qual era natural que ele também acabasse por escolher a Medicina ou o Direito
Tipo Crônica

Li que privilégio mesmo é ter um avô diplomado, ou seja, que estudou e se formou na faculdade, exercendo uma profissão que, nos tempos idos, normalmente era direito ou medicina ou engenharia, e imediatamente lembrei dos meus avós. Por não tê-los conhecido, até poderia supor que fossem escolados, mestres e doutores em alguma arte, ás de fabulações e engenhosos construtores, mas a verdade é o inverso, eram pessoas como costumam ser os pais e mães de nossos pais e mães, salvo uma exceção.

E agora me pego sopesando a frase, talvez porque os avós formados de que ouvi falar pela primeira vez na vida foram os de um colega da faculdade, um espécime raro para quem eu olhava e diante do qual minha vida até então se contrastava diametralmente.

Os pais médicos ou advogados, não recordo, e, antes deles, a geração mais antiga, de modo a se criar uma cadeia sucessória ao fim da qual era natural que ele também acabasse por escolher a Medicina ou o Direito, já que "estava no sangue", como um dote cheio desse inatismo com que os privilegiados justificam seus méritos.

Eu me perguntava por que nunca está no DNA a continuidade de uma linhagem de cobradores de ônibus, de lavadeiras, de sapateiros, de donas de casa, de garçons, de galegos, enfim, toda essa plêiade de ocupações subalternas cuja nomenclatura não tem qualquer brilho, charme ou rendimento à altura, uma gente sem história.

Pelo contrário, trata-se de ofício ao qual o filho esconde, do qual corre léguas por receio do julgamento, como outro amigo fazia, esse do antigo primário. Seu pai era pedreiro, vejam só, mas ele fingia que era outra coisa. A cena de encontro entre pai e filho na qual o segundo simula desconhecê-lo, na porta da escola, é um exemplo de vergonha de classe que me faz querer chorar mesmo hoje, tanto tempo depois, apenas porque, no ato, eu calhei de olhar para o pai, e o que vi foi uma dor cortante, mas contida, engolida.

Uma "autovergonha", talvez, um sentimento mal disfarçado porque, no fundo, é possível que o pai imaginasse que o filho agisse assim não porque fosse ruim, perverso, malvado, ingrato, como alguns de fato são, mas porque o veredicto social era muito pesado para carregar, e até nessa hora o pai foi amoroso, o pai pensou no filho antes de pensar em si. Porque entendeu que o filho era muito pequeno e frágil para suportar essa carga que não compreendia.

Éramos todos pobres na escola, verdade, mas uns sempre são mais pobres que outros, algumas tarefas são sempre mais indignas e pessimamente remuneradas do que outras, de sorte que até entre os desclassificados há uma categoria dominante, uma intermediária e uma ralé, reproduzindo uma clivagem que se estende a outros estratos, replicando uma ordem anterior.

Reencontrei esse sentimento apenas décadas depois, já formado e recém-ingresso num mundo cujas portas às vezes pareciam um tanto estreitas, sobretudo quando não se tem avós cuja biografia se conta em noites de reunião familiar, a quem se trata por vovô e vovó, galhos de uma árvore frondosa de sobrenome que frutifica em netos e mais netos, como capital multiplicado, rentável e valioso.

Foto do Henrique Araújo

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