Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Há algo de podre no reino da produção cultural que talvez seja mais como um sintoma dos tempos, ou seja, um efeito colateral de um tipo de relação entre a obra e a audiência, entre um filme e seu espectador, um livro e seu leitor: a literalidade, isto é, o excesso de didatismo, a mania de explicar sem permitir qualquer margem para dúvida.
Por um desses acasos, ontem ainda deparei com uma cena de novela, embora o problema (eu considero um) não se limite a esse gênero de narrativa. Na passagem, a protagonista repetia a palavra "pobre" três ou quatro vezes, de modo a acentuar que sua perspectiva era a de alguém cujo projeto aspiracional pressupunha um afastamento radical de sua classe de origem, representada ali pela mãe empobrecida (estou falando da nova Maria de Fátima, de "Vale tudo").
Trata-se naturalmente de exagero pela falta de discurso mais nuançado, mas me pergunto: isso é uma patologia de roteiro ou um reflexo do estado geral das coisas? Daí, quem sabe, essa enxurrada de filmes com enredos que estreitam o campo de possibilidades de interpretação, reduzindo ao mínimo o espaço para fabulação de impasses e soluções alternativas - ou sequer de uma solução, já que nem todas as histórias carecem de um desfecho para assegurar uma experiência mais rica.
De longas recentes à literatura nacional ou estrangeira, de trechos específicos aos títulos das produções, tudo leva a crer que tanto a indústria quanto os autores/autoras desconfiam da capacidade do público de interpretar com autonomia uma ironia menos escancarada ou uma ambiguidade de caráter de um tal ou qual personagem.
Na dúvida, então, saem as zonas cinzentas, regiões penumbrosas nas quais ninguém é inteiramente bom ou mau; e entram as áreas chapadas, destinadas ao esvaziamento de arestas de indivíduos, que passam a incorporar qualidades definidoras de uma trajetória - o que contraria o próprio sentido do que seja vida, mesmo na arte (ao menos naquela que costumávamos apreciar como tal, ou seja, como um teste de limites e exploração de fragilidades e pequenezas do humano).
Hoje dá-se o contrário, todavia, e o conforto é o princípio organizador de quase tudo. Exemplo disso é a prodigalização do termo, com uma gastronomia do conforto, um cinema confortável, uma literatura para o conforto, em suma, uma cultura devotada a normatizar padrões em vez de desestabilizá-los.
Novamente, tem-se aí tanto uma questão de mercado - para evitar perdas financeiras, é melhor apostar no que é certo e de repercussão segura - quanto de "zeitgeist", digamos assim, lendo-se o fenômeno mais como desdobramento de um cenário do que propriamente como causa.
Mesmo o mistério e a transgressão estão regrados, docemente administrados para acionar dispositivos específicos e provocar reações antecipadamente calculadas - um segredo finalmente revelado, um véu que se suspende, uma faceta ao cabo descoberta, numa operação sem tanto custo para o consumidor, sem o enfadar nem o distrair em demasia.
Enfim, tudo na medida certa para sairmos da sala escura ou finalizemos o livro ou o episódio da série televisiva certos de que somos dotados de uma inteligência fora do comum unicamente pela decifração dessa banalidade diluída, cuja forma máxima é a cultura do "easter egg", fruto da "marvelização" do mundo.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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