Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
De novo me vejo obrigado a encarar o corpo do ex-presidente, suas marcas e dobras, o manquejar desnudo por corredores hiperiluminados de hospitais, numa litania de gestos conhecida porque se arrasta desde 2018, quando do episódio da facada.
O corpo já então como uma gramática política, senha para atuação e princípio de performatividade - a partir de agora, o território é o da disputa simbólica pela posse da verdade.
O corpo-passaporte, que fala pelo falante, que dispensa a vocalização: quando toda palavra é insuficiente para atenuar-lhe os problemas (jurídicos, policiais etc.), quem assume o protagonismo é esse personagem enfermo.
Ninguém há de negar que o corpo de Bolsonaro se impõe como signo de força, que sua presença nas redes e nos jornais, nas manchetes e nas notícias, exposto como item do receituário populista, como peça de defesa, é parte da estratégia de agenciamento dos temas de seu campo: um mix de messianismo com prosperidade e profecias autorrealizáveis.
Sontag escreveu num livro sobre a morte: "Podemos nos sentir obrigados a olhar fotos que recordam graves crimes e crueldades", ou seja, aquele sentimento do qual não se escapa e para o qual toda a atenção se volta.
Que atrocidades esse corpo revela? Os elementos cicatriciais, a pele costurada, o intestino se desfazendo por obra do golpe de arma branca, as vísceras contidas com esforço e perícia dos profissionais que o assistem, o trabalho sem fim da recuperação de uma condição impossível de se alcançar, visto que o estrago parece ter sido considerável.
Enfim, toda uma operação para impedir que o de dentro do ex-chefe se mostre em público, que se rompa essa membrana mais delgada entre os conteúdos da digestão e o mundo exterior, pelos quais ele se tornou conhecido, que ocuparam tanto tempo de sua atividade como gestor verborrágico e coprolálico.
Nenhum incumbente antes dele explorou tanto assim o corpo, seja no poder ou fora, antes ou depois, exibindo-o como mercadoria.
O corpo adoentado, as fotografias que o flagram em macas hospitalares, sua história confundindo-se com a história do corpo acamado, sob cuidados médicos, cercado em oração, objeto de adoração e penitências alimentadas pelos mais próximos e por ele mesmo.
Quanto a isso, note-se que, ainda no pré-cirúrgico, chegou a disparar mensagem de cunho redencionista na qual faz menção à eternidade, num tom já desapaixonado que acentua o descolamento de interesses mais imediatos. Esse líder carismático prestes a ascender até assustou sua gente, entre familiares e aliados.
Nada disso é casual, no entanto. Penso que não, o que não significa que atribuo a tentativa de assassinato a uma conspiração autoinfligida com a finalidade de conquista da cadeira de mando. Longe disso.
O que se seguiu, entretanto, é pura artesania e cálculo de posição que combinam, em meio à gravidade delicada das intervenções, um senso de oportunidade com a curadoria do "corpo-vitrine", com o qual os seguidores do ex-presidente buscam o gozo da comunhão, numa mistura de religião e reality.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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