Logo O POVO+
Alucinações da máquina
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.

Alucinações da máquina

Roguei ao "padroeiro da internet" que intercedesse por mim – em vão, seja porque era muito jovem, seja porque sua canonização havia sido adiada em virtude da morte papal.
Tipo Crônica
Com aparência discreta, Samsung Galaxy Book3 Ultra é excelente bom computador para trabalho, e também aguenta jogos com qualidade razoável (Foto: Bemfica de Oliva)
Foto: Bemfica de Oliva Com aparência discreta, Samsung Galaxy Book3 Ultra é excelente bom computador para trabalho, e também aguenta jogos com qualidade razoável

De repente, o computador começou a digitar sozinho a mesma letra, dias e dias assim. Enquanto metade do País se comovia com a morte do papa e a outra metade se entusiasmava com o desfecho do reality (inclusive políticos e chefes de estado, que se alternavam nas redes entre o luto pelo sumo-pontífice e a excitação com a vitória iminente de uma cearense num programa de baixo teor de cristandade), meu notebook alucinava, claudicante.

Incréu, não aderi a qualquer das ondas, seja a espiritual ou a secular, mantendo-me decididamente vacilante num meio-termo radical entre a assunção e a danação. Não me pus a antecipar um mundo em desvario sem o seu líder religioso carismático (o "grande avô" do sul global).

Tampouco cogitei que o ganho da participante genuinamente nativa seria a confirmação do destino apoteótico de um Ceará altaneiro previsto desde os manuscritos de Alencar e confirmado por uma conjunção político-astrológica tão excepcional quanto falsa.

Nessa via-crucis tecnológica, encontrei alento onde menos se imaginava: nas respostas desatinadas das IAs em interação com humanos. Sim, essas falhas que, longe de afastá-las de nós, seres organicamente inteligentes, aproximavam-nas mais. E o que elas me diziam? Que tudo era apenas casualidade, contingência, tropeço - quer no Vaticano ou na capital cearense.

Considerei que o teclado do computador talvez pudesse estar antenado (o termo contemporâneo seria "pareado") com esse "zeitgeist" aleatório, batucando insistentemente um sinal cuja decifração me cabia fazer, mas para a qual eu não tinha instrumentos nem habilidade.

Perdido tal como a linguista diante dos ETs de sete pernas naquele filme já clássico, estava impedido de executar qualquer tarefa num dia repleto de demanda laboral - mesmo uma simples pesquisa impossibilitara-se. O sistema havia se voltado contra si, autofagicamente. "Sede vacante" - que no direito canônico sobralense se traduz como "a vaca foi pro brejo".

Qual seria então o segredo de Fátima por trás dessa rebelião maquínica? Que anjos e demônios se acotovelavam entre as peças móveis do alfabeto de plástico? Supus que murmurassem nomes do sucessor de Francisco ou destinos imprevistos para o produto televisivo. Não era nada disso.

Na verdade, eu não sabia do que se tratava de fato, embora tivesse suspeitas. Admito até que naquele momento os grandes temas da globalidade (EUA x China), da brasilidade (BBB x STF) ou da cearensidade (FB x Ari, o nosso Fla x Flu educacional) tinham pouca valia para mim, de tão compenetrado que me via em face das frases crípticas que se sucediam diante do meu nariz.

Essa escrita fantasmática, o que a havia deflagrado? Que desajustes permitiram a emergência dessa entidade que se apoderara do meu modelo mais modesto, com oito giga de memória e um tera de HD franciscanamente distribuídos?

Roguei ao "padroeiro da internet" que intercedesse por mim - em vão, seja porque era muito jovem, seja porque sua canonização havia sido adiada em virtude da morte papal.

Eu estava sozinho nesse deserto digital quando se deu o miraculoso. Levantei para ir até a cozinha beber água e mastigar um naco de pão de coco, rescaldo da Semana Santa. Ao retornar ao escritório, a tela se esvaziara. Nem sombra do texto escrito autonomamente por acúmulo de erros de digitação, numa obra para a qual eu já tinha um nome: evangelho da máquina.

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?