Henrique Araújo é jornalista e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado em Sociologia (UFC) e em Literatura Comparada (UFC). Cronista do O POVO, escreve às quartas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades, editor-adjunto de Política e repórter especial. Mantém uma coluna sobre bastidores da política publicada às segundas, quintas e sextas-feiras.
Há dias me vi tragado por essa espiral cuja vertigem é uma artista (uma cantora bilionária do norte global) que, não sei se por traço da adicção digital de hoje em dia ou de um milenarismo de rede, arrasta uma multidão predisposta a celebrá-la como marca e pessoa, como CPF e CNPJ, como criadora e performance de si ao mesmo tempo.
Nesses momentos de transe ritual no qual se transformam as apresentações, que evocam eras como se o tempo entre uma produção e outra se processasse numa escala descolada do referencial terreno - o que colabora para a magnificação dessa ideia de grandiosidade a-histórica -, firma-se o que só pode ser entendido como uma fetichização da transcendência.
A artista é consumida, e não somente sua música, como passaporte para esse outro mundo. Mundo menos material e mais folclórico, com filtros e texturas que imprimem a sua existência uma camada esotérica e impalpável.
A indústria cultural, como campo autônomo e produtor de símbolos que se replicam como memes facilmente vendáveis, se organiza em torno de princípios de mercado como em qualquer outra esfera ou âmbito da economia, dos quais não se difere tanto assim, seja o automotivo ou camputacional.
Daí que Steve Jobs, por exemplo, tenha sido idolatrado como epítome de invenção, consagrando-se como reserva criativa a um passo do circuito do dinheiro e da arte, ou seja, do sagrado e do profano, numa indecidibilidade típica de quem opera nesse entrelugar, dele derivando seus ganhos e os maximizando.
O mesmo se dá frequentemente com ídolos da música, cujas obras são não apenas admiradas como dispositivo materialmente acabado (discos, CDs etc.), mas também durante as execuções ou shows, ocasião na qual o artista se funde com a obra.
Ali, não há mais um limite claro, um dentro e um fora, um nome civil e uma fantasia. Do artista, que agora encarna a obra, dando-lhe corpo e alma, exige-se que se porte em cumprimento a uma codificação moral rígida, projetada pelos fãs/consumidores/seguidores, para quem qualquer falha do criador será, consequentemente, interpretada como falha da obra em si, da qual procuram se afastar, enojados.
É nessas horas que se flagra uma espécie de desencantamento do mundo, quando os mecanismos que regem a construção da persona do artista se escancaram, seja por ato falho, seja por conduta calculada em momentos de crise, diante dos quais o criador, cada vez mais municiado de informação sobre o comportamento de seus clientes, decide ignorar apelos ou seja lá o que se espere dele, passando a agir conforme seus ganhos.
O artista, então, frustra o seu público, não por corromper a autoimagem metodicamente esculpida de produto industrializado de cujo comércio ele é um zeloso acionista. Mas por fracassar como mantenedor do encanto, da magia e do filtro que asseguram a verossimilhança do espetáculo e, em última instância, dele mesmo.
Como uma espécie de pecado original, o erro macula a aura do criador, que está contaminada, não correspondendo em ato ao que se supunha a partir de canções nas quais um eu lírico pungente sofre e com o qual jovens do mundo inteiro se identificam.
A dor se revela no rompimento dessa identificação. É um choque, de fato, e esse choque se potencializa mais ainda em tempos como o nosso, de hipocondria moral e dependência afetivo-algorítmica, em que os laços entre o consumidor e o objeto se estreitaram para além do que se via quando o consumo talvez não se confundisse tanto com religião.
Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página
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