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Colecionando tampinhas
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É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.

Colecionando tampinhas

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Há um pote com tampas de garrafa pet na minha estante. Soube que a Sam está recolhendo para uma ação institucional no trabalho que consiste em trocar um volume absurdo de tampinhas por uma caneca. O objetivo não é ajudar a querida amiga na empreitada digna de Amélie Poulain, mas ter uma razão para lembrar da Sam em todas as oportunidades em que tomo água com gás. E, assim, ela não sai do meu pensamento.

Na verdade, eu nem queria ser amiga da Sam - foi insistência! Fui obrigada. Ela chegou, colocou o dedo no meu peito e declarou "você vai ser minha amiga, sim, senhora". E agora estou aqui, colecionando tampa de garrafa. Uma amizade construída tijolinho por tijolinho - com conversa, repreensão, shows no finado Órbita e Carnaval. Provavelmente, na próxima vez que encontrar a Sam, vou esquecer de levar as tampas. E, se e somente se chegar a entregar, ela vai abandonar em algum lugar aleatório. O propósito da reciclagem e do brinde não será alcançado. Mas lembrar dessa amizade tantas vezes no cotidiano - sim, tomo bastante água com gás! - tem feito um bem danado ao coração.

Encontro meus amigos e meus amores menos do que gostaria. A Sara mora do outro lado do Atlântico, o Romeu está sempre ocupado, a Rebeca vive um luto, o Renato trabalha demais. Há muitos melhores amigos. Incontáveis. Amados. Em comum, o fato de todos terem condições de vida e rotinas tão complicadas e exaustivas quanto as minhas.

Sabiamente, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman explanava sobre o amor líquido. Mas quem fala sobre a poesia de dividir um pacote de biscoito? Quem fala sobre a beleza de ficar em silêncio com alguém? Quem fala sobre as conversas que preenchem o caminho para casa? Quem fala sobre diálogos que acontecem apenas com um olhar? As relações atuais são líquidas, concordo. Mas ainda é possível sublimar, solidificar, condensar…

Para lembrar das minhas amizades e dos meus amores, armazeno coisas pequeninas - bilhetes, moedas, borrachas, grampos, alfinetes, botões. Tudo que é da ordem do miúdo me interessa: os brincos da Lia, o ímã da Thaís, os fósforos da Vivi. Acúmulos que são lembretes. Pois todo mundo vê quando você posta uma declaração. É o transbordar da taça. Entretanto, ninguém calcula quantas gotas de vinho ou de Skol Beats são necessárias até o recipiente ficar cheio de afeto, de cumplicidade ou de desejo.

Guardo um anel de tucum. Foi presente do Arthur. Presente é uma expressão forte. Ele estava rolando no dedo e eu puxei. Mas faço questão de deixar aqui como parte do meu amor e da minha devoção. Porque tudo que eu mais ansiava era o Arthur entregando aquele anel de bom grado para mim. Porém, nenhum dos dois foi audaz o suficiente para dar o primeiro passo - pois ambos acreditavam que não era recíproco, não poderia ser recíproco, era delicioso demais para ser recíproco. O objeto é um símbolo daquilo que poderia ter sido e não foi. Insisto em imaginar que - em algum momento do tempo e do espaço - nós dois vamos nos encontrar na mesma dimensão. O anel também estará lá.

Sigo colecionando miudezas que são ícones do passado e bússolas para o futuro. A partir das pecinhas, monto o quebra-cabeças da vida e aguardo as próximas partes. É como diz o clichê da internet: "se você colocar uma casca de banana em uma caixa, ela será cesto de lixo - mas se você colocar um anel de brilhantes, a caixa será um lindo porta-joias".

Foto do Isabel Costa

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