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Mas nem tudo é sobre você
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É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.

Mas nem tudo é sobre você

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Nos últimos meses, nenhum movimento é mais satisfatório do que chegar na academia e treinar usando somente o top e o shortinho. É sério. Experimentem vocês também. Quando comecei a praticar musculação, entretanto, utilizava blusas gigantescas - geralmente com estampas mirabolantes do Dumbo ou de algum personagem infantil. Ainda não sei exatamente o que estava tentando esconder.

Um fato que não é segredo para ninguém: sou desastrada ao extremo. Então, estava sempre enroscando o blusão nos aparelhos ou repuxando o tecido para conseguir executar os exercícios. Um dia, cansei. A manga longa da camisa colorida me deixou possessa. Estava fazendo meu cardio fofinho e arranquei a peça com o ódio sendo expelido pelos meus poros ao invés do suor. Era abuso, era ranço.

Logo em seguida, dei uma olhadinha saliente para baixo e tive a visão mais encantadora do mundo todo: meus seios. É que, além do benefício da genética, eles ainda foram esculpidos em uma cirurgia plástica de cinco longas horas. De poucas partes do corpo nutro tanto orgulho quanto do meu par de seios. Eles têm aquela voltinha perfeita no colo e são milimetricamente harmonizados. E não importa se existe cicatriz, se há uma gordurinha saltando no top, se as minhas costas não estão definidas... Pois, ao fim do dia de trabalho, quando tiro o sutiã em um gesto de libertação, percebo que o uso é obsoleto: meus peitos permanecem intactos com o arco impecável. Eles são incapazes de segurar um lápis.

Na academia, o meu movimento foi quase revolucionário, mas ninguém deu atenção. Quando avistei o entorno, reparando na fila de esteiras e bicicletas preenchidas por corpos suados, não havia um único vivente que tivesse movido o olhar na minha direção. Recoloquei o JBL com The Cranberries em último volume. Ninguém quer saber do meu par perfeito de seios, da minha gordurinha, das meias descombinadas. Até a pessoa que deveria acompanhar a execução dos meus movimentos (o instrutor) passa longe de mim e à revelia de qualquer consideração sobre o meu corpo. É cada um "fazendo o seu" e concentrado no próprio exercício.

O que eu pensava? As pessoas pagaram mensalidade para me assistir treinando? Sou tão importante assim para atrair olhares? Devo ser muito gostosa, né? Mas o meu umbigo hidratado com óleo Lily Essence não é o centro do mundo.

Não é sobre considerar a minha existência desinteressante. É sobre amar a sensação de normalidade. Sou simplesmente uma garota 30 com um par de peitos perfeitos e um quadríceps a ser desenvolvido treinando musculação. E tenho a plenitude de existir como mais um ponto diminuto entre os quase oito bilhões de habitantes do planeta terra. A banalidade da vida tem suas vantagens.

O próximo passo é ir até a academia sem o blusão. Todos os dias, vejo mais garotas caminhando tranquilamente nas ruas apenas com o top, o cabelo em trança bolha (clássico dos meus dias de preguiça) e a garrafa de água a tiracolo. Elas transmitem uma paz inebriante. O percurso é rapidinho, coisa de quatro quarteirões e cinco minutos a pé. O intuito é não sujar tanta roupa e colocar menos peças na máquina de lavar (outro sinal de preguiça). Mas estamos no Brasil, sou uma mulher e - fora da catraca da academia - o medo do assédio, infelizmente, ainda impera.

Foto do Isabel Costa

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