
É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.
É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.
É difícil ter concentração para escrever essa crônica sabendo que você está hospedado em um leito do Instituto Doutor José Frota, o IJF. Hospedado é um eufemismo - figura de linguagem tão apreciada por nós. Desde o acidente de motocicleta, na realidade, tenho apresentado dificuldades para executar atividades simples do cotidiano. Penso em como os teus dias estão passando, nas dores sentidas no tornozelo e no queixo, nas cirurgias anunciadas para breve.
Entrei no Frotão - apelido carinhoso dado pelos profissionais de saúde e replicado na cidade - tantas vezes que faltam até dedos para contar. Quando trabalhava como repórter, percorria a emergência de uma ponta a outra com ou sem autorização dos responsáveis pelo hospital. Tinha pesadelos frequentes com ambulâncias alarmando; com ossos expostos e sangue, sangue no lençol branco; e também com as temidas gaiolas (depois descobri serem Aparelhos de Ilizarov).
Uma semana de IJF transforma a pessoa de modo alarmante, um mês de IJF muda a concepção de humanidade de forma irreversível, três meses são uma experiência bastante difícil de descrever. Mas precisava ser uma internação sem precedentes e sem prazo previsto para findar? O acidente foi uma grande fatalidade. É impossível controlar e desnecessário apontar culpados. Somente aconteceu. E nós vamos lidar com as consequências, juntos, como amigos.
Sabe a pior parte? O vídeo que caiu na minha caixa de mensagens. O arrependimento de dar play bateu fundo no coração. Imagens despropositadas da tua esposa, muito aflita, tentando acalmar as pessoas ao redor e proteger você do sol escaldante na beira da estrada. Qual pensamento passa na cabeça de quem saca o celular para registrar o desespero alheio de forma tão banal?
Você faz falta nas miudezas do cotidiano. Olho para a mesa à esquerda e não tem você rindo das minhas piadas bestas, oferecendo pão com café, tagarelando sobre as próximas provas de concurso. Falando assim parece que o clima é de tranquilidade extrema, né? Mas nós brigamos por tudo, todo dia, toda hora. Eu, emburrada, coloco Pabllo Vittar no fone. Em resposta provocante, você toca qualquer hino de louvor da Damares ou do Irmão Lázaro. Nossa amizade é improvável. Somos diferentes em gostos, narrativas, referências, idade. Depois das desavenças, passamos dias sem olhar para a cara um do outro. E, no fim, nem lembramos mais quais os motivos da briga. Você sempre vem pedir desculpas com um abraço ou um chocolate - mesmo quando eu estou errada.
É confortável e bonito partilhar o ambiente de trabalho com alguém que amamos. Passo oito horas do dia sentada nessa cadeira, diante desse birô capenga, batendo "asdf" nas teclas gastas do notebook. Imagina fazer tudo isso com alguém detestável ou irrelevante ao lado? Sorte grande de quem partilha a rotina imposta pelo capitalismo com amigos amados, com pedaços do coração fora do corpo. O Emicida canta com razão: "Quem tem um amigo tem tudo".
Volta logo! Eu estou com saudades.
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