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Tanto o néctar quanto o veneno
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É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.

Tanto o néctar quanto o veneno

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Tipo Crônica

Primeiro, o pé direito. Depois, o pé esquerdo. Duas batidas para me certificar da ausência de risco. O ritual permanece o mesmo durante toda a vida - saindo para a escola, para a faculdade, a caminho do trabalho, durante as viagens, pouco importa. Pela manhã, coloco a mão dentro dos tênis atestando a ausência de escorpião ou outra criatura pequena, peçonhenta e perigosa. O excesso de zelo é resultado dos avisos da Lene: "menina, olha os sapatos, pode ter entrado um bicho aí durante a noite".

Mais aterrorizada do que precavida, aprendi a rotineiramente conferir os pares antes de calçar, a sacolejar os lençóis, a afivelar o capacete. Com tanta cautela, não deveria ter ficado espantada, portanto, quando encontrei a massa formada por patas segmentadas, tronco e cauda no fundo do all star preto de cano alto. Foi apenas o tempo de piscar e processar a presença, o quase aracnídeo se esgueirou para longe. Sorrateiro, o safado.

Desde quando aprendi a amarrar os cadarços sozinha, procuro um escorpião dentro dos tênis. Mas, no momento em que ele apareceu, fiquei surpresa. Esperava encontrar o quê? Uma barra de ouro? Um blogueiro oferecendo dois reais? Um aluno perguntando se é pra copiar? Um par de ingressos para o show do Gilberto Gil? Quem procura escorpião, acha escorpião. Quem insiste na desesperança, vai ter desesperança. Quem muito deseja o amor, mais cedo ou mais tarde - acaba encontrando. Não existe arrecadação no pomar errado - nem na colheita feliz do Orkut nem na vida real.

O discurso de pouco interesse e muito deboche da Bel atual contrasta em demasia com as crises de desespero da Bel do passado. Em 2012, quando aluguei um apartamento minúsculo - nas adjacências do Montese - não havia mínima gota de racionalidade. Nunca havia visto um escorpião até vislumbrar uma linha amarela se esgueirando para atravessar a porta da sala. Pavor, fobia, susto... Precisei apertar os olhos para ter certeza de que não estava sendo traída pelos óculos. Os movimentos seguintes lembram um filme de terror em câmera lenta. Matei aquele escorpião com chineladas imprecisas e muitas lágrimas. Depois, encolhida no sofá também minúsculo, chorei feito criança esquecida pelo Papai Noel. Foram noites em claro. Cogitei em entregar as chaves ao senhorio. Não suportaria viver naquela jaula cheia de habitantes indesejados.

Além de fórmulas mágicas e misturas de produtos de limpeza, aprendi que o Montese é um bairro com alta incidência de escorpiões. Como vencer uma batalha coletiva? Como controlar uma população? Descobri também que, apesar da dor lacerante, um machucado não oferece risco mortal para adultos. O medo foi substituído por apatia. "Mais um escorpião para matar, mais um litro de água sanitária jogado na casa...", repetia, pensando que eles deviam ter mais temor de mim do que eu tinha deles. Grandes medos nascem por algum motivo, mas não são eternos. Grandes coragens crescem como instrumentos de defesa e de ataque. Ou, como diz a Tati Bernardi em frase atribuída à Clarice Lispector: "tenho medos bobos e coragens absurdas".

Plot twist: escrevi todo esse texto, muito floreado e inspirado, para, ao fim, revelar que meu all star não abrigava escorpião. Era apenas um grilo, somente um grilo - criatura sem veneno e desejosa de cantar. E eu realmente não preciso desse medo todo...

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