Logo O POVO+
Branco, de cano alto
Foto de Isabel Costa
clique para exibir bio do colunista

É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.

Branco, de cano alto

.

Janeiro de 2004. Trabalhei nas costuras da mamãe durante o mês inteiro. Fui cortando ponta de linha das blusas até os dedos criarem calos. Ela prometeu um all star para a volta às aulas. Empolgação juvenil. Passei a infância usando klin com velcro. Seguiria no ensino médio com tênis cheios de cadarços. Depois da primeira experiência de ofício, ganhei o prêmio: preto, cano baixo, linha vermelha.

Janeiro de 2007. Entrei para a faculdade de jornalismo na primeira tentativa, sem precisar de cursinho. Recebi felicitações e presentes, objetos necessários na vida de uma universitária: um mp3 para ouvir música no ônibus, um pendrive e um all star novinho. Era igual ao anterior, meu favorito, companheiro dos três anos de colegial. À época, meu pé já havia estabilizado no atual número 36.

Junho de 2010. Fui contratada como estagiária do Vida&Arte. A celebração? Um all star quadriculado em tom marrom. Pisaria em novo terreno, mais uma vez, com novos calçados. Na empolgação, comprei um número maior, mas usava mesmo assim e muito feliz.

Janeiro de 2011. No rádio, Chorão cantava que o impossível é só questão de opinião. Pois tomei a decisão de fazer graduação em Letras na UFC. Era a primeira turma ingressando na universidade via Sistema de Seleção Unificada, o Sisu. Fiz Enem de ressaca e, não perguntem como, alcancei uma nota alta o suficiente para acessar o badalado curso de Direito. Mas, não. Agarrei mais um par de all star - charmoso, todo vermelhinho - e fui rumo ao Bosque das Letras.

A vida toda foi isso. Nova fase, novo calçado. Pisar em territórios desconhecidos é assustador. Sendo naturalmente reservada, tenho certa dificuldade ao chegar em lugares diferentes. É necessário preparação. Para estar segura dos meus passos, preciso apertar os cadarços com força e dar um laço duplo.

Quase no fim da pandemia, em junho de 2021, com as mudanças no mundo, acreditava que o ritual era passado. Entretanto, quando um novo terreno surgiu no horizonte e o funcionarismo público entrou na minha vida, os amigos enviaram um par azul e uma playlist finalizada pela voz da Cássia Eller.

A fabricante do all star, a Converse, acumula mais de um século produzindo calçados que se tornaram ícones da moda, da música e do esporte. De Kamala Harris a Miley Cyrus, passando por Nando Reis e Kurt Cobain, muitas são as celebridades que ostentaram os pares em tapetes vermelhos e ocasiões informais.

Para o jovem periférico, entretanto, é uma vitória pessoal quando a aquisição de tênis deixa de ser uma questão e passa a ser apenas uma compra. Não precisa esperar o salário do pai cair ou a tia rica presentear. É ir até a loja e escolher. Quem não passou a adolescência herdando calçados dos irmãos, usando falsificações ou parcelando em 60, 90, 120, 150, sem entrada e sem juros, não entende isso.

Finalmente, chegamos em setembro de 2024. Meu all star mais recente repousa ao lado enquanto escrevo essa crônica. Ele é todo branco, de cano alto. Para acompanhar comprei também meias imaculadamente brancas. Nos próximos meses, vou pisar em um terreno fértil. Olho os tênis e reconheço a minha capacidade de caminhar firme, sem titubear, subindo qualquer colina e vencendo obstáculos. Posso até estar assustada e chorosa, mas meus passos são certeiros.

Segue comigo a dificuldade para amarrar os cadarços - herança ingrata dos malditos velcros...

Foto do Isabel Costa

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?