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Questão de lógica
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É jornalista, professora da rede pública, escritora de cartas e de livros não publicados.

Questão de lógica

São quatro irmãos. Um não vê nenhum velório. Um vê três velórios. É questão de lógica. Não quero ficar para o fim. Contraditório: quero viver muito tempo, mas Deus me guarde da longevidade de ficar por último. Enterros nos colocam para refletir sobre o sentido da existência humana, as escolhas malfadadas, a falta de controle sobre tudo. Imagina passar por isso três vezes… Cavar um buraco e colocar o corpo de um irmão lá dentro é perder uma parte de si.

Sem falar que o cemitério do Cascavel divide parede com um boteco que funciona em horário comercial na escala 6x1. É a agenda mais curiosa para estabelecimento de tal localização e natureza. Curiosamente, o Bar Toca dos Amigos - ou Toca do Defunto, como vocês preferirem - sempre tem um frequentador animado na calçada, não importa se é segunda-feira às 9 horas ou quarta-feira no sol do meio-dia. Eu não quero sair do sepultamento de um irmão e passar na frente de tal comércio para assistir pessoas rindo e bebendo. Pois o primeiro pensamento seria "poderíamos estar todos ali comendo aquele espetinho duvidoso com uma cerveja quase gelada".

Depois do enterro, vamos para casa lidar com os retalhos: roupas, documentos, livros, dívidas (se for o infeliz caso) e burocracias. Ainda bem que o mundo eliminou os cds e as outras mídias físicas. Mas o que fazer com o celular? Com o xampu pela metade? Com os óculos de grau? O banco segue ligando em busca da vovó. Já mandamos celebrar a missa de 15 anos de saudade. E sou importunada com "dona Maria, a senhora tem crédito aprovado…". Morto não quer consignado. Se soubessem as taxas de juros, os vivos também recusariam. Mandei direcionarem a ligação para o céu. São Pedro resolve.

A minha angústia aumentou quando entendi que a realidade não segue roteiro. Os caçulas podem ser os primeiros a se despedir. A Nana já me insulta de graça no cotidiano. É capaz de morrer antes só para me afrontar. Porque ela sabe que eu não saberia viver sem o cheiro do perfume Liz, sem o barulho dela abrindo o portão na madrugada, sem as nossas crises de riso e de choro.

Assisti a mais enterros do que gostaria. Ultimamente ando fugindo desses momentos. Não por falta de empatia, mas por paciência curta. Depois de ver tantas covas sendo abertas, fui ficando calejada e inquieta. O Natanael sabia que ia morrer. Pediu bolo confeitado e fogos de artifício na entrada do cemitério. Ninguém entendeu nada quando o estouro começou a pipocar. Pá, pá, pá, seguidas vezes. Ele partiu do jeito que quis e os vivos ficaram.

Mas estou enjoada até do clima amistoso que se instala na madrugada. Alguém começa a contar histórias espirituosas sobre o morto. É típico do interior. Um causo e um copo descartável com caldo até a noite passar, e o carro da funerária chegar com flores. Lene listou músicas para o próprio velório. O líder da playlist é o padre Fábio de Melo. "Mas é pra tocar a noite toda, Isabel", diz, garantindo que me convence a levar a JBL para a funerária. Coêlho é ousado. Acertou o descanso eterno ao som de Waldick Soriano. "É isso ou não tem herança", ameaçou. Nós, seres humanos, temos mania de querer controlar o incontrolável.

Quando estamos só nós três, o assunto sempre é morte, cemitério e quem vai ficar com a tupperware de sete litros. É mórbido e horrível querer lotear a vida. Enquanto estamos pensando na despedida, esquecemos de viver. E ainda existe tanta vida pela frente... Nossos sonhos não cabem no caixão.

Encerro citando Cora Coralina: "Não podemos acrescentar dias à nossa vida, mas podemos acrescentar vida aos nossos dias".

 

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