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Máquina Singer
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Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é mediadora de leituras, jornalista e professora. Realiza ações no âmbito da leitura, desde 2016, em Fortaleza e na Região Metropolitana. É especialista em Literatura e Semiótica pela Uece. Autora dos livros Pitaya e das obras experimentais Vitamina D, Querida Anne e Retalhos. Aos domingos, quinzenalmente, é possível ler as crônicas da Bel no Vida&Arte, caderno do O POVO

Máquina Singer

Durante a infância, eram três os privilégios alimentados pela minha família: o telefone fixo, a matrícula na escola das freiras e a assinatura do jornal impresso.
Tipo Crônica
Máquina de costurar na qual eram feitos os vestidos da Menina Benigna (Foto: AURELIO ALVES)
Foto: AURELIO ALVES Máquina de costurar na qual eram feitos os vestidos da Menina Benigna

Durante a infância, eram três os privilégios alimentados pela minha família: o telefone fixo, a matrícula na escola das freiras e a assinatura do jornal impresso. A linha telefônica - número 3334.1329 - foi colocada pela vó Cleide durante os anos 1980. Era puro luxo ouvir o barulho da chamada ecoando sozinho. A ostentação, entretanto, tinha objetivo: facilitar a comunicação entre a gerência da confecção de roupas, os fornecedores de aviamentos e os atravessadores das peças bordadas.

Mamãe, gerente de planejamento e controle de produção, ligava para a telefonista para completar a chamada que trafegava até outros estados. Do Cascavel para o mundo. Mas, claro, nós, filhas e netas, trabalhadoras das máquinas, aproveitamos à exaustão. Eu chegava da escola e ligava pra Lay (3334.0234) e pra Smilly (3334.3109).

A matrícula na escola dava acesso à biblioteca, aos melhores professores e a um estudo realizado com livros - não com essas apostilas duvidáveis editadas atualmente, mas com bons livros de língua inglesa, geografia e matemática. Cinco eram os eixos trabalhados na instituição: leitura, escrita, cálculo, arte e ética. Não consigo mensurar o quanto esses pilares foram fundamentais para a construção da pessoa que sou.

Minhas crianças estudam na mesma escola. O pátio é o da minha meninice, as mangueiras estão lá e, por hora, ninguém aderiu ao uso de apostilas. No baile de "doutora do ABC" da minha sobrinha, ano passado, a diretora - uma freira mau humorada - fez um discurso inspirado e reforçou que os cinco valores permanecem inabaláveis.

Mas nenhum luxo era comparado ao jornal. Não erámos informados pelas imagens turvas da televisão. Todas as manhãs - de segunda-feira a domingo - um moço chegava de moto e enfiava o papel pelas grades da sala.

O tio Clínio sempre amou ler o jornal. E eu não teria escolhido ser jornalista se, dia após dia, não tivesse visto a leitura atenta e entusiasmada dele enquanto os dedos ficavam cheios de tinta. Ele não sabe o quanto me influenciou na escolha da profissão.

Acontece que, como bom leitor, tio Clínio gostava do jornal intacto. E nós, meus irmãos e eu, ficávamos na ansiedade dele terminar a leitura. Por vezes, abrimos o jornal antes e tentamos encaixar os suplementos da mesma forma. Mas jornal aberto não volta pra forma original. E os dedos sujos de preto denunciavam a travessura.

Meu irmão mais velho ficava com o caderno de esportes. Meu irmão caçula - que não sabia ler - pegava os folhetos e o caderno de variedades. Para mim, irmã do meio, ficava o Vida&Arte. E foi assim que aprendi a amar cultura. Meu entendimento do mundo passa pelos filmes da TV - mas também por peças de teatro, críticas de shows, entrevistas com gestores públicos… Não era uma leitura apropriada para uma criança - como tantas outras leituras que fiz por puro acaso durante a infância.

Da mesma forma que, na confecção, as costureiras amavam a máquina Singer, eu aprendi a amar o Vida&Arte enquanto instrumento de trabalho. Na última sexta-feira, o nosso V&A completou 36 anos de existência - passando pelas páginas impressas e brilhando nas vielas virtuais. Nasci no mesmo ano do caderno: 1989. Em alguns meses, será a minha vez de chegar aos 36 anos. Fiz de tudo nesse Vida&Arte. Vi muitas gerações de jornalistas sagazes. Fui estagiária e repórter. Atualmente, ocupo a função de editora-chefe. E recebi a responsabilidade que considero o mais nobre entre todas: ser cronista. Tudo isso enquanto tento permanecer com a curiosidade da menina que passava horas falando ao telefone, manchava os dedos com a tinta do jornal e tinha sempre um livro da escola para ler.

Foto do Isabel Costa

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