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"Bom dia"
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Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é mediadora de leituras, jornalista e professora. Realiza ações no âmbito da leitura, desde 2016, em Fortaleza e na Região Metropolitana. É especialista em Literatura e Semiótica pela Uece. Autora dos livros Pitaya e das obras experimentais Vitamina D, Querida Anne e Retalhos. Aos domingos, quinzenalmente, é possível ler as crônicas da Bel no Vida&Arte, caderno do O POVO

"Bom dia"

Tipo Crônica

Depois de passar cinco anos morando no interior - incluindo o tempo de pandemia e a reabertura -, eu acabei absorvendo hábitos. Alguns, talvez, estejam mais para vícios - como não suportar a ideia de ficar presa no trânsito, deitar antes das 21 horas, fechar todas as portas da casa antes de dormir, acordar com o canto do galo, lavar roupa à mão, cozinhar a minha comida e ouvir o barulho da briga dos vizinhos. Claro, nem todos são sustentáveis no fluxo da cidade. Outros são tão universais que seria injusto atribuir à moradia...

Fortaleza é gigante e somos engolidos pelo movimento. Acreditamos que a "capital alencarina" é pequena. Mas não é! "Fortaleza é um ovo", mas nem tanto. "De férias com o ex poderia ser gravado na Praia dos Crush", mas nem todas as temporadas.

A Capital vira paisagem de si mesma - confundindo congestionamento, pôr do sol, uber moto, cachorro latindo, tapioca no meio da rua e tantas coisas miúdas que compõem o emaranhado urbano. Já odiei Fortaleza, já fui embora, já quis mudar a Cidade e as suas pessoas, já me arrependi de ir embora, já quis voltar, já desisti de voltar. No fim, eu voltei. A questão é que retornei para um lugar totalmente novo.

Não cozinho mais todas as minhas refeições e estou dormindo depois de 23 horas - acordada demais com o movimento da Cidade para conseguir pregar o olho. Mas um único hábito permanece intocado: "bom dia". Claro, cumprimentar as pessoas de maneira educada é uma questão de convivência básica. Não deveria estar atrelada ao humor ou ao local de moradia, mas, sim, a uma questão de civilidade. Mas, em Fortaleza, com tanta gente e tanta correria, vamos esquecendo dos movimentos mais óbvios.

Da minha casa até o meu trabalho, no O POVO, são 1300 metros caminhados e seis cumprimentos de "bom dia". Métricas quantitativas e qualitativas que aprendi a desvendar nos últimos tempos. O primeiro "bom dia" é para o zelador que está sempre pela portaria quando passo, depois vem o porteiro.

O terceiro é pro Pingo - cachorro cuidado pela Bia, minha vizinha mais querida. Dona de um comércio dividido entre o conserto de motos e a alimentação, ela me presenteou com dois cascos de Stella Artois. "Fique, pra quando você quiser comprar em outro canto". Foi a Bia quem reparou quando eu voltei desavisada, pensando em mil coisas, e esqueci de falar "boa noite" - pois o estresse da cidade contamina devagar. "Ué, não fala mais 'boa noite', não? É só 'bom dia'. Esqueceu dos amigos", repreendeu.

A minha vizinhança é um barato. Tem o moço que molha as plantas com uma mangueira. Ele não responde ao cumprimento. Mas, de tanto eu repetir "bom dia", começou a direcionar o jato de água para o outro lado quando eu me aproximo. O quinto "bom dia" é para o senhorzinho que fica sentado tomando banho de sol na varanda. Um dia, ele tá com o rádio de pilha. Outro dia, ele tá com o celular vendo vídeos de gato no TikTok. Transitando entre os dois extremos, ele repara nos meus mínimos movimentos: "não passou batom hoje", "tá chateada?", "tá passando mais cedo", "tá passando mais tarde", "agora que tu vem?", "agora que tu vai?". O sexto e último "bom dia" é para o rapaz que está estudando para o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Como eu tenho essa informação? Nem eu mesma sei.

É isso. "Bom dia" pra vocês.

Foto do Isabel Costa

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