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Fora do percurso
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Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é mediadora de leituras, jornalista e professora. Realiza ações no âmbito da leitura, desde 2016, em Fortaleza e na Região Metropolitana. É especialista em Literatura e Semiótica pela Uece. Autora dos livros Pitaya e das obras experimentais Vitamina D, Querida Anne e Retalhos. Aos domingos, quinzenalmente, é possível ler as crônicas da Bel no Vida&Arte, caderno do O POVO

Fora do percurso

Mas, em uma quarta-feira qualquer, depois de 11 horas, o ônibus simplesmente não passou e a mãe ficou esperando a criança.
Tipo Crônica
FORTALEZA, CE, BRASIL, 31-08-2016: Ônibus escolar trafega em rua do bairro Curió. Rotina no bairro Curió, após as prisões de policiais envolvidos na chacina dos jovens no bairro da Grande Messejana. (Foto: Camila de Almeida/O POVO) (Foto: CAMILA DE ALMEIDA)
Foto: CAMILA DE ALMEIDA FORTALEZA, CE, BRASIL, 31-08-2016: Ônibus escolar trafega em rua do bairro Curió. Rotina no bairro Curió, após as prisões de policiais envolvidos na chacina dos jovens no bairro da Grande Messejana. (Foto: Camila de Almeida/O POVO)

Ana Bya é minha sobrinha de nove anos. Desde os sete, ela vai e volta da escola no ônibus amarelinho. A mãe da Bibya tem um protocolo muito rígido - que, em tese, não deve ser quebrado. Às 5h40min, a criança é tirada da cama quentinha. Às 6h25min, elas já estão no ponto onde o transporte recebe ela e outros alunos. Às 6h28min, o motorista abre as portas e a monitora do amarelinho pega as mochilas das crianças menores, incluindo a Bya.

Às 10h55min, quando a aula acaba, o percurso é feito do modo inverso, como tem que ser. Ana Bya vai para a fila do ônibus, a monitora sobe as mochilas, a mãe espera no mesmo ponto e recebe a menina por volta de 11h10min. É uma orquestra muito bem ensaiada e cada peão tem o seu papel definido.

Mas, em uma quarta-feira qualquer, depois de 11 horas, o ônibus simplesmente não passou e a mãe ficou esperando a criança. Os minutos foram longos demais. Tudo coube naquela meia-hora: choro, questionamento, aflição, ansiedade, medo, olhar o relógio. Simultaneamente, enquanto tudo isso acontecia em um lado da história, do outro, Ana Bya caminhava sozinha - arrastando a lancheira, a garrafa Pacco e a mochila da Frozen - até o portão de casa, onde tocou sucessivas vezes na campainha. Tocou, tocou e tocou, mas não havia ninguém para abrir a porta.

O motorista do ônibus mudou a rota sem avisar. A monitora não conhecia os estudantes e o caminho de costume. Quando percebeu que o percurso estava estranho, Bibya indagou: "moça, hoje não vai passar no ponto da Benigna Pacheco?". A resposta foi um "não" muitíssimo sonoro e uma proposta "se você quiser pode descer logo, menina".

A criança desembarcou de um lado, a mãe aguardava como de costume do outro. E, no meio das duas, uma rotatória que seria impossível de atravessar sozinha. Na rápida tomada de decisão, Bya resolveu seguir o rumo de casa.

"E o que você pensou quando ela te deixou lá?", eu perguntei alguns dias depois do ocorrido. Ainda fico nervosa ao cogitar as várias possibilidades catastróficas que poderiam ter acontecido naqueles 30 minutos. Ela, risonha como sempre, não demonstrou muito interesse pela situação: "pensei, assim, essa mulher vai mesmo deixar uma criança sozinha na calçada de uma bar?".

Depois de tocar a campainha e aguardar sem resposta, Bya retornou, olhou novamente a rotatória e definiu que realmente não seria possível enfrentar a passagem sozinha. Entrou em uma oficina mecânica - nesse momento, já chorando, pois não há coragem infantil que suporte tanta demanda - e pediu ajuda. "Moço, você me leva até a minha mãe?".

O Seu Ribamar entregou a loja na mão de quem estava por perto e foi lá deixar a menina. Nesse ínterim, a minha família já estava mobilizada em uma busca obviamente desenfreada. Saíram de carro para dar voltas pelo bairro, foram até a Secretaria de Educação - órgão responsável pelo transporte escolar - saber o motivo da mudança de rota, quem era o novo motorista, quem era a nova monitora e por qual razão o ônibus não havia passado no horário combinado.

Bya ainda não tem noção do perigo que correu. O mundo é um lugar extremamente inseguro para meninas e mulheres. Quando olho para a minha sobrinha, eu penso na Natany Alves - jovem de 20 anos que foi sequestrada e morta ao sair de uma igreja em Quixeramobim; eu penso nas vezes em que precisei tomar decisões rápidas sobre qual caminho seguir enquanto apertava a chave de casa entre os dedos; eu penso em quanto a maldade, a violência e a irresponsabilidade alheia estão à solta por aí...

 

Foto do Isabel Costa

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