
Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.
Jornalista, leitora, professora. Criou e faz curadoria das séries A Cozinha do Tempo e Cidade Portátil, dentre outras atividades.
Flora descobriu a sombra naquela tarde de sábado. A luz do sol entrava pelo vazio da área de serviço aberta para a cidade. E banhava Flora pelas costas. A menina se encantou pelo desenho em movimento que se alongava à frente no piso de madeira. Não sei se sabia que surgia dela própria, nosso sol familiar, em contato com o sol de todas as manifestações de vida. Sei que nos lembrou da graça e da força do encantamento pelo qual não conhecemos.
O chão tão perto de quem tem um ano e vinte e poucos dias, Flora se agachava para tocar a sombra, olhar pegando, como a gente faz para ver melhor, o olho uma experiência outra de tato, o tato um sentido outro de ver. Flora é nosso cinema.
Flora ouviu da mãe, no colo dela, a palavra mar. No dia em que viu o mar, ouvindo o nome da coisa, Flora repetia maravilhada a palavra tão pequena que abraça algo tão grande. Saber a palavra fazia Flora saborear o mar ao dizê-lo. Cabe em mim o nome disso tudo que vejo?
Flora é filha de criaturas leitoras. Vive em uma casa com livros. O pai escreve e edita livros. A mãe escreve, publica. Flora brinca com eles. Identifica pessoas de sua convivência que estão em alguns deles, associa outras as fotos e desenhos vistos ali, leva livros de uma pessoa para outra, na brincadeira que pode mantê-la ligada e empenhada e contente com o que está a fazer: ir e vir, dar algo para alguém, receber de volta e levar para outro destino. Flora uma agulha, as linhas se sobrepõem. Ela borda a superfície do mundo.
Flora presta muita atenção.
Às vezes penso que já aprendeu mais do que nós. É uma mestra. Aprendemos com ela. As crianças nos ensinam, sabemos.
Cada criatura do convívio ganha da Flora um novo nome. Uma combinação de sons que não para de nascer. Cada criança inaugura o mundo. Nos faz pensar no mistério que é existirmos. Água, ar, au au, árvore, folha, formiga, gente, rocha.
Flora tem tias gêmeas. Por que tem umas que são duas? Não cabia tudo em uma? Fico pensando em como é o espanto dela. O atrevimento já conhecemos.
Toda poros, como um dia fomos, Flora vive em estado de contato, contágio, encontro. Imparável, a não ser quando dorme. E pode rir e gargalhar durante o sono. Se alguém por perto ri do riso dela dormindo, gargalha junto. Com o que sonha Flora? Já perguntei por aqui.
É palhaça. Um observatório, imita atos e modos. Responde a resposta esperada para perguntas ensaiadas, sai do papel quando não contamos que vá fazê-lo. Experimenta, repete, manobra, reina. Você leu as reinações de Narizinho?
Escrevo Flora e você pode ler Antônia, Bento, Clara. E seguir contando.
A superfície do mundo fica mais bonita com o bordado da Flora.
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