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Quando Fortaleza deixou de nos pertencer?
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Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Quando Fortaleza deixou de nos pertencer?

Tomada pela insegurança, Fortaleza se transforma em uma não-cidade enquanto seus moradores precisam escolher entre a ignorância consoladora e a realidade alucinante.
Tipo Opinião
FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-09-2015: Muro pichado, homens tem medo, no bairro Benfica. Pontos de assaltos em bairros da cidade. (Foto: Tatiana Fortes/O POVO) (Foto: TATIANA FORTES)
Foto: TATIANA FORTES FORTALEZA, CE, BRASIL, 14-09-2015: Muro pichado, homens tem medo, no bairro Benfica. Pontos de assaltos em bairros da cidade. (Foto: Tatiana Fortes/O POVO)

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Morando em Fortaleza há exatas duas décadas, não lembro de ter vivido, em nenhum outro momento, semelhante sensação de insegurança como a que, de alguns anos para cá, tornou-se impressão corrente entre fortalezenses de todo e qualquer perfil social — sem ignorar o obsceno fato de que essa distribuição "democrática" do medo opera com especial intensidade em bairros periféricos, historicamente desassistidos pelo poder público.

Tornou-se assunto recorrente, esse medo. Tememos pela nossa vida e não só por ela. Há medo pelo que pode ser feito contra a vida dos nossos filhos e companheiros, contra a vida dos nossos amigos, seus filhos e companheiros, contra a vida dos nossos colegas de trabalho e estudo. Tememos pela vida não menos importante dos que encontramos nos ônibus, nas filas, nos hospitais. Pela vida dos que estão em lugares onde essas mesmas vidas deveriam ser salvas.

É medo o sentimento que alimenta e move o fortalezense. Somos um povo em permanente estado de alerta. Tornou-se nossa identidade. Não é o favo da jati, a asa da graúna, o hálito perfumado da virgem. Não somos a terra da luz. Somos um povo com medo. E é o medo, puro e perene, que nos arranca da cama todas as manhãs e que, no ritmo infinito dos relógios, semeia dúvida, desconfiança e derrotismo: posso ir por essa rua? Posso dirigir de vidros baixos? Posso conversar com aquele estranho?

Tornaram-se todos estranhos, pessoas e lugares. São estranhas as praças e parques. São estranhos os outros. A estranheza que antes era potência de encontro e curiosidade, transformou-se, para o fortalezense, em escudo. O estranho agora nos repele, e em uma cidade tornada estranha, fomos acuados por mãos invisíveis aos limites confinantes das cercas e grades, dos vidros blindados, das câmeras e fios elétricos.

E então me pergunto se é possível se livrar da sensação de que Fortaleza não mais nos pertence. Como superá-la, esquecê-la. É possível ignorá-la? Devemos, podemos, preferir a ignorância? E se reproduzirmos, no nível privado, o "esquecimento", o "desconhecimento" praticado pelos que assinam papéis em seus palácios? E se o que nos cabe — para tolerar, para suportar a cidade que não é mais nossa — é tomar parte no joguinho retórico de acusação e pretexto protagonizado por nossos representantes no calor de uma nova tragédia?

Mais que o chamado brutal da realidade, o que assola qualquer pretensão de indiferença — por mais mentalmente benéfica que ela possa vir a ser — é a certeza de que a opção pela anestesia é prova máxima do privilégio. Anestesiam-se os que podem, os que pagam, os que mandam, os que assinam, os eleitos. Morrem de medo e de bala os que não podem, os que não conseguem pagar, os que obedecem, os assinalados e os que votam.

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