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Ode ao grotesco ou a exploração imoral da tragédia
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Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Ode ao grotesco ou a exploração imoral da tragédia

Vídeo de resgate em jet ski divulgado por parlamentar é culminância obscena do processo de espetacularização e desumanização da tragédia que assola o Rio Grande do Sul
Tipo Opinião
Cena do vídeo do deputado Luciano Zucco (PL) espetacularizando a tragédia que assola o Rio Grande do Sul (Foto: Reprodução redes sociais)
Foto: Reprodução redes sociais Cena do vídeo do deputado Luciano Zucco (PL) espetacularizando a tragédia que assola o Rio Grande do Sul

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O vídeo que mostra um deputado federal pilotando um jet ski em performance de salvamento de duas crianças nas enchentes que assolam o Rio Grande do Sul é das coisas mais grotescas a que fomos submetidos nesses dias de tragédia. A afetação heróica do parlamentar, capturada em um jogo de câmeras digno de cinema de ação, opõe-se, de forma profundamente angustiante, à expressão dos resgatados.

À sua frente, uma menina com as mãozinhas agarradas ao painel do jet ski. Atrás do deputado, buscando apoio com a força dos braços no corpo do parlamentar, um garoto. No rosto das crianças, a tradução da perda e do desespero, o reconhecimento da tragédia.

Em um nível abaixo do consciente, talvez, em espaços subjetivos cuja pouca idade ainda não os permite acessar, a intuição de que mais do que salvos estão sendo explorados, revitimizados em um momento de desconcertante fragilidade.

A cena se torna ainda mais absurda (e aqui o termo é empregado no sentido filosófico de uma angustiante desconexão em relação à vida) quando se percebe a presença — por imbecilidade dos realizadores da dita performance ou por premeditado deboche com a futura audiência — de uma lancha de apoio à ação, ao lado do jet ski, ocupada por apenas duas pessoas.

No curto vídeo, perturbador, espetacularização e desumanização convivem de forma íntima e desavergonhada como poucas vezes se viu em um contexto de comoção social.

"As metáforas e os mitos, eu estava convencida, matam", escreveu a ensaísta norte-americana Susan Sontag muito antes da massificação das redes sociais e da apropriação, por elas operada, do vocábulo "mito" para fins pretensamente políticos e efetivamente violentos. Matam, sim, os mitos e as metáforas. Violentam.

A violência a que foram submetidas essas crianças, cuja fragilidade torna-se espetáculo perene na imortalidade hedionda da Internet, tem o único propósito de metaforizar a potência de um mito político, de um político acostumado a estar entre os mais votados de seu estado.

Sontag, que dedicou importantes ensaios à questão da imagem, escreveu sobre "as complicadas relações entre uma metáfora e a coisa que ela representa, perverte, distorce e cria". Também refletiu sobre o que chamou de "sabedoria suprema da imagem fotográfica", que seria, em suas palavras, a de nos dizer: "Aí está a superfície. Agora, imagine — ou, antes, sinta, intua — o que está além, o que deve ser a realidade".

O que representa, então, a performance de heroísmo do deputado? O que sua metáfora distorce e perverte? O que ela cria? Tragédias dessa dimensão nos retiram (nos proíbem) o luxo da ingenuidade, nos obrigam ao sentimento, à intuição, nos convidam (ou nos forçam) a enxergar o que está além, abaixo da superfície.

No caso do grotesco vídeo em questão, a "sabedoria suprema da imagem" não está na intenção vulgar do deputado, em seu heroísmo canastrão, mas na expressão de trágica resignação das crianças

Foto do Jáder Santana

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