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O kitsch como ideal estético de nossa política
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Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

O kitsch como ideal estético de nossa política

No período de campanha eleitoral que se aproxima, o único remédio contra o embotamento provocado pelos candidatos é a dúvida
Tipo Análise
Escritor Milan Kundera  (Foto: Companhia das Letras/Divulgação )
Foto: Companhia das Letras/Divulgação Escritor Milan Kundera


A proximidade de um novo período oficial de propaganda eleitoral — "oficial" porque, mesmo fora dele, a propaganda política nunca deixa de nos assediar — convive com a dilatação pornográfica, na conduta dos candidatos e de seus apoiadores mais ferrenhos, do mau gosto e do ridículo — "dilatação" porque, mesmo fora desse período, essa atitude kitsch nunca deixa de nos constranger.

Derivado do alemão e emprestado da estética, o termo kitsch é aplicado para descrever a vulgaridade de objetos que se apresentam como profundos ou artísticos. É o que chamamos por aqui de breguice ou cafonice, exemplos da certeira utilização de um sufixo geralmente empregado para agregar um sentido depreciativo (em termos de qualidade) ao radical. O kitsch, em sua transposição para o português brasileiro, é primo, por afinidade gramatical, da pieguice, da meiguice e da vigarice.

Milan Kundera dedicou algumas páginas de seu A insustentável leveza do ser para refletir sobre o kitsch como elemento basilar (e profundamente poderoso) da política. "Ninguém sabe disso melhor do que os políticos. Assim que percebem uma máquina fotográfica por perto, correm até a primeira criança que vêem para levantá-la nos braços e beijá-la na face. O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os movimentos políticos", escreveu.

O kitsch, que se corporifica nos abraços e beijos dos candidatos, no pastel de feira comido pela metade, nas dancinhas desengonçadas, na farofa espalhada pelas bochechas harmonizadas, nas madeixas platinadas, seria, ainda tomando emprestada a reflexão de Kundera, "a negação absoluta da merda", a exclusão do campo visual do eleitor de tudo o que há de inaceitável na existência humana. O kitsch é uma máscara contra a feiura. É a vitória da ditadura do coração sobre a razão. É o "biombo que dissimula a morte".

Nos próximos meses, teremos nossos sentidos ainda mais embotados pelos excessos do kitsch. É prudente que nos lembremos de que não há nada de natural nesse embotamento. Que ele é provocado, inflamado. Que nasce nas reuniões de gabinete, nos gráficos de popularidade, nas apresentações de marketing. E que se espalha, a uma velocidade desconcertante, pelas redes invisíveis dessa arma eletrônica que se transformou em extensão de nossas mãos. Da sobrecarga de estímulos que gera o embotamento, o que sobra é a cegueira.

Embora trate o kitsch como parte da condição humana, Kundera propõe estratégias para seu enfrentamento. "O verdadeiro adversário do kitsch totalitário é o homem que interroga. A pergunta é como a faca que rasga a cortina do cenário para que se possa ver o que está atrás", escreveu. O único recurso contra o embotamento é a dúvida. Contra o império tirano do kitsch só temos a possibilidade da interrogação. Que não nos falte sanidade para suspeitar e disposição para questionar ao longo dos próximos meses.

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