Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
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É curioso e revelador ler Hermann Hesse nestes anos do século XXI. Nascido na Alemanha em 1877 e tendo publicado seus textos mais importantes na primeira metade do século XX, Hesse alicerçou seu rico projeto literário na ideia de dualidade do sujeito. Encaixam-se nessa intenção vários de seus livros mais conhecidos, como "Demian" (1917), "Sidarta" (1922) e "Narciso e Goldmund" (1930). Mas é em "O lobo da estepe", de 1927, que o autor se envolve mais acuradamente com as potencialidades reflexivas desse tema.
Marcadamente influenciado por suas leituras de Nietzsche e por sua aproximação à psicanálise junguiana, Hesse cria em "O lobo da estepe" um homem que se vê cindido em dois: metade homem, metade lobo. Embora seja um escritor, em termos de estética e estilo, mais romântico que moderno, Hesse desafia o leitor, nesse romance, a construir sentido a partir de uma narrativa fragmentada e que a todo tempo cruza as fronteiras entre realidade e sonho — nessa provocação ao jogo está sua modernidade.
Na última entrevista de Clarice Lispector gravada em vídeo, de 1977, a escritora responde, quando perguntada sobre os autores que a haviam marcado: "Fui ler, aos treze anos, Hermann Hesse e tomei um choque. 'O lobo da estepe'. E aí comecei a escrever um conto que não acabava nunca mais. Terminei rasgando e jogando fora." É uma imagem preciosa a da jovem Clarice assombrada pelo desenho feito por Hesse de uma subjetividade cindida em fragmentos mil, muitos outros além do homem e do lobo pretendidos por seu protagonista.
Porque é esse o argumento central do autor: dentro de cada um, há muito mais que homem e mulher, cultura e natureza, cordeiro e fera, música e silêncio. "Na realidade não há nenhum eu, nem mesmo o mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades", escreve ele sobre Harry Heller, protagonista da obra que é lido por muitos críticos como alter ego do autor.
Tenho pensado com frequência nesse homem estilhaçado de Hesse. Tenho pensado, também, sobre como, um século depois da publicação de sua obra, estamos mais do que nunca obcecados com um impulso classificatório e rotulador que parece operar sob o signo da compulsoriedade. Assaltados que fomos por uma urgência política sem precedentes, somos constrangidos a escolher e a declarar — já, para ontem! — quem somos, de que lado estamos e quais causas apoiamos. Cobra-se a perenidade de valores, a imutabilidade de princípios, a estabilidade de convicções. Não há lugar para a indecisão em nossos tempos.
Hesse classifica como essencialmente burguês o padrão de conduta que procura a tudo limitar, que exige, para a garantia do próprio conforto existencial, o estabelecimento de categorias restritivas e estanques. Assim escreve, em uma reflexão assustadoramente atual: "Cada indivíduo isolado vive sujeito a considerar esse caos como uma unidade e fala de seu eu como se fora um ente simples, bem formado, claramente definido; e a todos os homens, mesmo aos mais eminentes, esse rude engano parece uma necessidade, uma exigência da vida, como o respirar e o comer."
Infelizmente, a força da velha literatura é pouca diante do que agora nos pedem e exigem. E o choque da jovem Clarice, aos treze anos deparada de golpe com a própria legião, é ainda mais violento em 2024: e se, por baixo das sólidas camadas de culpa e coação, de contrição e constrangimento, descobríssemos (e assumíssemos) a presença de lobos, deuses, palhaços e serpentes?
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