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Do nojo à suavidade: Miguilim e a boa vida
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Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Do nojo à suavidade: Miguilim e a boa vida

Invenção de Guimarães Rosa, Miguilim nos convida a escapar dos códigos e a resgatar um modo de vida soterrado pela velocidade e pela violência
Tipo Opinião
Guimarães Rosa (Foto: Wikipédia)
Foto: Wikipédia Guimarães Rosa

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Guimarães Rosa é autor para o qual é sempre bom retornar. Seu texto nos desloca para um lugar que, como o cinema de Jonas Mekas (tema de texto que publiquei nesta coluna em setembro último), fascina pelo efeito de um anacronismo assombroso que seduz e inquieta. Ler ou reler Rosa nestes tempos é achar-se diante de convicções e riquezas que fomos induzidos a deixar de lado pelas reclamações compulsórias às quais, voluntariamente ou não, acabamos nos submetendo.

Reencontrar Miguilim em 2024, por exemplo, é colocar-se diante de uma figura que, aos oito anos, questiona nossos modelos de maturidade e os padrões de sucesso e felicidade que elegemos como destino vital. A criatura de Rosa, protagonista de "Campo geral", uma das sete novelas reunidas em "Corpo de baile", de 1956, diminuta em sua presença desconfiada, em seu gestual ansioso, é uma das mais deslumbrantes invenções de nossa literatura — habita com Iracema, Brás Cubas, Macunaíma e Macabéa nossa constelação de perenes.

Esse "certo Miguilim", que "morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui", é conduzido, pelas linhas inventivas da prosa de Rosa, por uma estrada de pequenas alegrias e grandes angústias. Da separação dolorida de Pingo-de-ouro, sua cachorrinha quase cega, no início do texto, ao suicídio do pai, em suas páginas finais, passando pela morte do irmão menor e pela intuição do próprio fim, Miguilim se derrama e se recolhe como pode, como sua sensibilidade aguçada lhe permite, por um sertão que é pai e padrasto.

Aos primeiros golpes que recebe, "Miguilim inventava outra espécie de nôjo das pessôas grandes. Crescesse que crescesse, nunca havia de poder estimar aqueles, nem ser sincero companheiro." Deparado com a rudeza da vida adulta, assistindo impotente à invasão de seu mundo infantil pela brutalidade das circunstâncias, pelos arrepios da necessidade, a personagem fabula novos nojos e firma consigo próprio o compromisso de, mesmo crescido, recusar a maturidade tirânica que porventura herdaria.

Mas é apenas parcial o êxito de Miguilim em seu projeto de desforra. Não que termine por se render ao arsenal de violências a ele oferecidas pela circunstância. Também não é ao desespero existencial — um desalento mais intuitivo que racional — que ele se entrega. É graças à lembrança pueril de seus diálogos com o irmão morto, o Dito que tudo sabia, que Miguilim sinaliza, no fim da novela, para a superação das possibilidades de violência e aflição.

"O Dito dizia que o certo era a gente estar sempre brabo de alegre, alegre por dentro, mesmo com tudo de ruim que acontecesse, alegre nas profundas. Podia? Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma." É na sabedoria da intuição infantil que Miguilim encontra seu norte, em tudo oposto aos códigos do mundo adulto, fadado à ruína pelo que ele aprendeu a recusar: à velocidade, Miguilim opõe a lentidão; à grandeza, o miúdo; à severidade das emoções, a leveza de não se importar.

 

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