Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Jáder Santana é jornalista e Jáder Santana é jornalista e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
No livro que narra seu encontro, no norte gelado da Rússia extrema, com o urso selvagem que a atacaria e dilaceraria parte de seu rosto, a antropóloga francesa Nastassja Martin nos propõe um exercício de atenção: “escute as feras”. O chamado, que é também o título de seu texto, provoca nossa racionalidade ordenadora e rancorosa: o que teríamos a ouvir da besta que nos lacera a carne e corrompe a face externa de nossa identidade?
Martin, que chama a colisão com o urso de “encontro arcaico”, sonda o episódio a partir de sua potência epifânica. O acidente transformou-a na outra que sobrevivia oculta dentro dela mesma, soterrada pela pátina civilizatória que começa a escorrer. “Houve hibridação e, no entanto, continuo sendo eu mesma. Quer dizer, eu acho. Alguma coisa que se parece comigo, mais os traços da máscara animista: estou inside out. O fundo animista dos humanos é o rosto deformado da máscara.”, escreve.
E depois: “O que está por baixo do rosto, o fundo humano dos bichos é o que o urso vê nos olhos daquele que ele não devia olhar; é o que meu urso viu nos meus olhos. Sua parcela de humanidade; o rosto por baixo do seu rosto.” Transforma-se o urso, transforma-se ela, numa metamorfose que é retorno à substância. Por baixo de máscaras deformadas, germina o eixo humano-animal sobre o qual se estruturam, de forma compulsória, juízos e morais. Em meio ao ruído do progresso, Martin escuta a fera para se escutar.
Distante do frio russo, em uma sofisticada cobertura no calor dos trópicos, Clarice Lispector também percebe o chamado selvagem. Mais que ouvir a fera, ela a devora. O encontro com essa alteridade radical se dá, em “A paixão segundo G. H.”, pela boca. O urso feroz se transforma na barata repulsiva, e é pelo paladar que a máxima repulsa se totaliza. Uma diferença fundamental: enquanto Martin se desloca de seu centro para encontrar o bicho, G. H. é assaltada pelo bicho no conforto de seu centro.
“Sei que parece que estou tirando a tua e a minha humanidade. Mas é o oposto: estou querendo é viver daquilo inicial e primordial que exatamente fez com que certas coisas chegassem ao ponto de aspirar a serem humanas. Estou querendo que eu viva da parte humana mais difícil: que eu viva do germe do amor neutro, pois foi dessa fonte que começou a nascer aquilo que depois foi se distorcendo em sentimentações a tal ponto que o núcleo ficou sufocado pelo acréscimo de riqueza e esmagado em nós mesmos pela pata humana.”, escreve Clarice.
Em seu monólogo radical, G. H. avança através da aridez apavorante de uma despersonalização que, pela gradativa supressão das camadas da moral, termina por revelar o elemento universal, essencial, primevo, que começamos a perder no momento de nossa primeira respiração. A gosma que escapa do interior cindido da barata é a medula de nossa própria identidade: comê-la equivale a alforriar nosso cerne.
O radicalismo das duas propostas, de Martin e Clarice, intimida e provoca. Quando estamos acostumados à superfície, quando é por ela que transitamos, quando é nela que nos relacionamos, quando é dela que nos alimentamos, qualquer convite à profundidade se reveste com os signos do sinistro. Olhar os animais, escutar as feras e, por que não, ler literatura, são formas de espreitar o que poderia irromper pelas brechas de nossos acúmulos.
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