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O "doutor" cai e a Síria salta no escuro
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Editor de Política do O POVO, escreve sobre Política Internacional. Já foi repórter de Esportes, de Cidades e editor de Capa do O POVO

O "doutor" cai e a Síria salta no escuro

Ainda há um caminho muito longo e tortuoso até ser possível falar em transição e reconstrução na Síria. A deposição de um líder autoritário não garante a instalação e a manutenção de um governo democrático
Tipo Opinião
ABU Mohammed al-Jolani, líder do Hayat Tahrir al-Sham (HTS)
 (Foto: Abdulaziz KETAZ / AFP)
Foto: Abdulaziz KETAZ / AFP ABU Mohammed al-Jolani, líder do Hayat Tahrir al-Sham (HTS)

Há quase 14 anos, em março de 2011, um grupo de adolescentes pichava um muro da cidade síria de Daraa com o seguinte dizer: “Agora é sua vez, doutor”. A referência era ao presidente Bashar al-Assad, médico oftalmologista de formação, que herdara do pai Hafez o comando do país e o modo autoritário de governá-lo. O contexto era o da chamada “Primavera Árabe”, série de mobilizações massivas que abalaram ou derrubaram regimes ditatoriais no Oriente Médio e no norte da África naquele período.

Muito mais rebeldes do que ativistas políticos engajados e com grande poder de mobilização, os jovens foram detidos e torturados pelo regime Assad. Os protestos ganharam corpo e o slogan “o povo quer a queda do regime” se espalhou. Estava aceso o estopim para uma guerra civil que resultou em pelo menos 600 mil sírios mortos, e outros 14 milhões (quase dois terços da população) obrigados a deixarem suas casas.

Quando o cenário recente era de uma aparente estabilidade após um cessar-fogo que congelou o conflito e conferiu continuidade ao regime, uma ofensiva relâmpago de 10 dias liderada pelo grupo islamita Hayat Tharir al-Sham (HTS) derrubou no último fim de semana, enfim, o doutor. Assad fugiu para a Rússia, que lhe deu asilo, após 24 anos no poder. Uso de armas químicas, assassinatos, estupros, tortura, sequestros são alguns dos crimes da longa ficha corrida de um dos piores seres humanos que já passaram por este planeta.

Diante de tantas atrocidades cometidas por Bashar al-Assad, são mais do que justas e naturais as celebrações feitas por sírios no país e em sua diáspora pela queda do ditador. Basta pensar que chegou ao fim um regime que causou tantas mortes e sofrimento. Ou pensar nos refugiados que sonham com o simples direito de voltar para casa.

No entanto, ainda há um caminho muito longo e tortuoso até ser possível falar em transição e reconstrução na Síria. Pegando os próprios exemplos dos protestos da Primavera Árabe, a deposição de um líder autoritário não garante a instalação e a manutenção de um governo democrático. Mudanças de poder em países como Tunísia, Egito e Líbia nos últimos 14 anos foram marcadas por forte instabilidade política, guerras civis e recrudescimento do autoritarismo.

A incerteza síria

Após um evento inesperado como foi a ofensiva relâmpago que resultou na queda da dinastia Assad há mais de meio século no poder, é necessário um tempo maior para projetar os efeitos do atual momento. O cenário ainda é muito nebuloso e não é possível ainda fazer qualquer tipo de projeção. Em uma encruzilhada geopolítica de interesses externos, a Síria hoje é um país totalmente fragmentado e destruído.

O fato de o HTS ser uma antiga ramificação da Al-Qaeda e o principal líder do grupo, Abu Mohammed Jolani, ter feito parte da organização jihadista até o rompimento em 2016 dá a mostra os enormes desafios pela frente. O HTS e Jolani são apenas a face mais visível e proeminente da coalizão anti-Assad que derrubou o regime. Há ainda outros grupos como os curdos no nordeste do país e milícias apoiadas pela Turquia no noroeste.

Assad era o inimigo comum a todos esses grupos. Com ele deposto, acomodar essa gama de interesses na reconstrução do país sem estourar novos conflitos internos é a principal questão.

Um xadrez de atores externos

Os atores externos também serão fundamentais nesse processo, embora o cenário também seja de incerteza, sobretudo quanto à reconfiguração de segurança no Oriente Médio com as tensões envolvendo Israel.

Os reinos do Golfo tentam promover um mínimo de estabilidade na região. Os EUA sinalizam uma postura mais isolacionista com Donald Trump. A Rússia aceitou a perda do aliado Assad, mas reluta em dialogar com o HTS. Mesma situação do Irã, que quer preservar o corredor sírio em conexão com o Líbano e o Hezbollah para não desintegrar o chamado “Eixo da Resistência”. Além da Turquia, que não deve abrir mão de ampliar sua influência na região.

Se promover um diálogo entre todos os atores internos da Síria já parece difícil, uma concertação que acomode todos os interesses de agentes externos parece uma tarefa ainda mais árdua.

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