
Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor
Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor
Hoje Fortaleza faz aniversário. Singelos 298 anos, um tantinho de tempo quando pensamos na poeira acumulada de cidades além do mar. É o lugar em que tenho as raízes fincadas, onde as histórias dos meus pais se confundiram, onde nasci e me tornei adulta, onde meus filhos deram pelo calor do sol.
Sei bem que ser uma pessoa enraizada tem suas desvantagens. Não nego a fascinação pelos nômades, uma gente que a vida lançou no mundo para viajar, migrar, descobrir o colorido da vida. A mim, no entanto, a vida elegeu o pertencimento. Meus pais casaram e vivem até hoje na mesma casa, numa vizinhança onde, por décadas, meus avós viram a mim e meus irmãos e primos vingarem como mudas bem adubadas. Estudei por anos na mesma escola, a faculdade logo ali, na previsibilidade de um lugar já conhecido, o nome do meu pai fundido na placa de formandos de outro tempo, dando pela minha passagem pelos corredores.
Por ter estado praticamente todo meu tempo aqui, fui aprendendo a interpretar a luz. E Fortaleza tem uma luz que se transmuta ao longo do ano. É preciso raízes para saber ler as estações da luminosidade e aguardar os pores-do-sol que pintam de rosa e amarelo queimado os céus de julho e agosto. É preciso raízes para acostumar-se às ventanias de outubro, que tentam nos levar de volta à Guiné, quiçá à Lisboa, através do ar. Sem preparo dos anos, como resistir aos calores cada vez piores de janeiro?
São os escritores enraizados, os acostumados ao chão da sua terra, os apegados às esquinas bem conhecidas e à luz implacável que tudo descortina que cuidaram de guardar a memória dessa cidade em transmutação, que verticaliza e barbariza seus lindos sobrados. Pessoas dedicadas não só a observar a cidade, mas a traduzi-la em palavras, tornando seu pó, suas pedras e seus rostos em história. Pessoas dedicadas a guardar a beleza dos dias e também a fazer a denúncia do rastro de destruição do patrimônio histórico e arquitetônico. Porque Fortaleza é implacável. Apesar de suas cores tão festivas, vibrantes, de seu mar de águas mornas, é uma cidade arredia a passados concretos, uma cidade deslumbrada por vidros e espelhos que devassam o céu, arranhando-o. Uma cidade que destrói entre amabilidades e sorrisos.
Teremos o prazer de reencontrar os registros de autores como Airton Monte, Jáder de Carvalho e Raimundo Girão, cronistas dessa Fortaleza que já não é, em um livro que tem sido preparado com esmero pela Editora da UFC, uma casa que eu tenho o prazer de integrar como vice-diretora. A obra Fortaleza, poéticas do passado: antologia, organizada pelo professor Francisco Cavalcante Júnior, traz, mais do que as luzes de uma cidade já vivida, os cheiros, os afetos e os deslumbramentos de autores enraizados nesta esquina do Brasil rodeada de mar. Uma expressão desse gênero literário tão brasileiro, tão dedicado à interpretação do tempo: a crônica.
O livro ainda leva algum tempo para chegar, mas é um convite para pensarmos e escrevermos a cidade do presente, com suas luzes e cores de hoje. Que cidade deixaremos para a crônica do futuro? Ainda guiará os viajantes do mar com a luz bailarina do farol, rodopiando sem parar nas alturas do morro?
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