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O legislador chantagista
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

O legislador chantagista

A tarefa de legislar é uma das mais desafiadoras da República e envolve uma grande responsabilidade democrática. É um trabalho que exige capacidade de compreender os anseios dos diferentes grupos sociais representados no parlamento; exige também disposição para a construção de consensos assim como uma permanente abertura ao influxo transformador do tempo. A lei, assim como todas as manifestações de uma cultura, não é estática, nosso senso do que pode ser tolerado amadurece com a mudança dos comportamentos e sensibilidades.

No modelo político que temos construído desde o fim das monarquias absolutistas, o Poder Legislativo ocupa uma posição especial, porque é considerado o braço estatal mais próximo do soberano, o povo. Os revolucionários que cortaram a cabeça dos reis tinham desconfianças dos juízes, a quem quiseram restringir, e buscaram prever rigorosamente os possíveis abusos dos titulares do poder executivo, neutralizando-os com controles externos. Governantes e julgadores só podem fazer o que a lei os permite, considerada a lei a voz legítima do verdadeiro titular da autoridade.

Essa digressão serve para lembrar o leitor de que não se deve legislar como quem joga cartas, apostando no tudo ou nada. Leis ruins impactam a vida das pessoas, desnaturam instituições, tornam o Direito débil, porque difícil de ser observado. Toda a estrutura sofre, corrompida a partir de seu alicerce. Um Legislativo irresponsável é causa e consequência de uma democracia frágil, e essa dificuldade deve inspirar em nós muita cautela e disposição de cobrança em face de parlamentares chantagistas.

A chantagem está às vistas de todos, e eu não saberia precisar se o chantageado é o Judiciário, o Executivo ou cada um de nós, os eleitores. Nossos senadores e deputados, em sua maioria, estão em pé de guerra com o Supremo Tribunal Federal, que consideram exorbitante em seu papel de guardião das leis. Indispostos com o dever de cumprir decisões judiciais por vezes necessárias e bem fundamentadas e incomodados por juízes não raro voluntaristas, decidiram elaborar leis com o objetivo de "mandar mensagens ao Supremo".

As leis são escolhidas a dedo para esse fim: aquelas que impactem a opinião pública, gerem pautas atrativas à mídia, atiçando o punitivismo que dorme no coração de muitos brasileiros. Cito o exemplo da PEC, aprovada nos últimos dias no Senado Federal, que busca criminalizar o porte para consumo de toda e qualquer quantidade de substância ilícita. Uma medida que faz pouco sentido em termos de política de combate ao tráfico e de política carcerária e que servirá para alimentar os presídios de corpos úteis à estrutura do crime organizado. Corpos bem marcados socialmente em termos de classe e raça, diga-se.

A mudança, se aprovada, será um pesadelo para o Poder Judiciário e para a polícia, e canalizará uma energia que poderia ser útil para resolver o problema do narcotráfico que nos assola. Ela nos levará a nos perguntar: afinal, que condutas são graves o suficiente para levar alguém ao cárcere? O que alimenta a saúde do tráfico, afinal, é o uso recreativo de algumas substâncias ou a persistência da sua proibição? n

 

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