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A culpa não é da minissaia da vítima
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

A culpa não é da minissaia da vítima

O STF, com a decisão, busca corrigir esse problema, torna sem efeito uma estratégia de defesa empregada com frequência, visivelmente sexista, e que se revela bastante eficaz: culpar a "promiscuidade" da vítima

Afinal, o que significa afirmar que o sexismo é um problema estrutural no Brasil? Durante a semana, uma importante decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal, proibindo a defesa de acusados de crimes sexuais de desqualificar a vítima em razão de seu comportamento individual. Na prática, já não é possível para um réu, como estratégia de defesa, culpar uma mulher por ela ter sido estuprada.

Essa decisão é útil para que possamos refletir sobre o sexismo estrutural, entendendo como ele se manifesta no sistema de justiça. O Poder Judiciário e todas as instituições que contribuem para a vida do processo, como Ministério Público, a advocacia pública e privada, Defensoria Pública, etc, são compostas por pessoas educadas conforme um conjunto de valores, uma visão de mundo transmitida pela educação e afetada pelo modo como a ordem social está organizada. Por isso, a estrutura também "contamina" essas instituições, influenciando suas práticas e sua cultura interior.

As hierarquias entre as pessoas, a distribuição de poder, os valores morais, as sensibilidades e os comportamentos, tudo é definido por uma certa estrutura estável, que costuma sobreviver a um tempo longo, longo o suficiente para que entendamos essa organização como algo "natural", como se o mundo não pudesse ser de outro modo. É isso que inspira a mentalidade de que os homens nascem para "comandar", enquanto as mulheres nascem para "obedecer"; que os homens têm instintos e dificuldades de os conter, enquanto as mulheres são predispostas por natureza a provocá-los.

Por isso, quando temos um processo judicial, é esperado que os atores do sistema de justiça acabem interpretando e aplicando o Direito a partir desses valores, inspirados pela moralidade dominante na sociedade. Essa influência é ainda mais intensa em contextos em que há pouca diversidade social nos quadros institucionais, como é o caso do Brasil, que tem um Judiciário majoritariamente masculino, heterossexual, católico. Uma instituição bastante homogênea em termos de valores, portanto.

Isso explica por que, muitas vezes, é muito violento para uma mulher vítima estar em um processo, que se torna um espaço de revitimização. Por mais que o Direito, no plano das normas, já tenha avançado bastante em termos de proteção da mulher contra a violência, muitos advogados, juízes, promotores, delegados ainda orientam sua conduta profissional por visões sexistas, que contaminam o modo como a mulheres são tratadas nesses espaços. Pouco importa a lei abstrata nesse caso, a moralidade, como elemento estrutural enraizado nos corações e cabeças, tem mais força.

O STF, com sua decisão, busca corrigir esse problema, tornando sem efeito uma estratégia de defesa empregada com frequência, visivelmente sexista, e que se revela bastante eficaz: culpar a "promiscuidade" da vítima. É uma decisão acertada, pois enfatiza que, no processo, não vale tudo para se safar: é indispensável que uma defesa não constitua a manifestação de violência contra os outros sujeitos do processo. Ganha a sociedade e, sobretudo, ganhamos nós, mulheres, submetidas ao império da lei e ao voluntarismo de alguns dos juízes.

 

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