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Triste Fortaleza sob escombros
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

Triste Fortaleza sob escombros

Quero aproveitar a tristeza do que perdemos para lembrar a importância do apego às pedras. São as pedras lapidadas, transformadas em arquitetura, em marco apropriado pelas memórias das pessoas, que nos diferenciam dos brutos. Nós somos aquilo que podemos inscrever nas pedras
Tipo Opinião

Poucas cenas dizem tanto da Fortaleza de hoje quanto a imagem do que um dia foi o edifício São Pedro na Praia de Iracema. A demolição acabou. Tornou-se um descampado extenso, composto de escombros e poeira, que irradia de forma a luz solar refletida dos pedaços de cimento caiado de branco. Uma quadra arrasada, como se, durante a noite, um bombardeio produzido por retroescavadeiras tivesse apagado a história concreta de um marco importante da cidade.

Alguns leitores responderão que a carcaça estava deteriorada, condenada, que o progresso pede que não tenhamos apego ao velho, que no lugar será erigida mais uma dessas torres espelhadas que tornam a cidade uma caricatura feia de cidades igualmente feias, como Miami ou Dubai. O leitor dirá que se tratou apenas de uma atenção cuidadosa da nossa prefeitura, que teme pelos passantes nas calçadas boêmias do entorno. Eu respondo, com a serenidade do desencanto, que tais respostas são apenas cinismo disfarçado de preocupação: o edifício foi abaixo porque se quis, porque não se fez nada durante tempo suficiente para que não houvesse outra solução que não a ruína completa.

Mas quero aproveitar a tristeza do que perdemos para lembrar a importância do apego às pedras. São as pedras lapidadas, transformadas em arquitetura, em marco apropriado pelas memórias das pessoas, que nos diferenciam dos brutos. Nós somos aquilo que podemos inscrever nas pedras. Nosso patrimônio, isto é, tudo que guardamos pelo seu valor, depende de nossa capacidade de burilar. E, uma vez que as pedras transformadas em belos prédios são frutos de um trabalho árduo, da poesia da imaginação criativa, são o registro de um passado que se comunica conosco, é indispensável que as guardemos com cuidado, reconhecendo-nos como responsáveis pela sua integridade.

Eis o que diferencia o patrimônio público do privado: a dimensão de nossa responsabilidade com sua conservação. Justamente porque não pertence a mim ou ao leitor, pertence difusamente a todos que, numa tarde à beira do tempo, sentem o enternecimento ao deparar com a beleza de um edifício, um parque público, uma área selvagem e natural intocada. Justamente porque não é nosso e apenas nosso, não podemos perdê-lo por nosso capricho, não nos cabe substituí-lo por ganhos mesquinhos que encherão os bolsos de investidores sem zelo.

Que responsabilidade pode ter um gestor ou um investidor que só vê na pedra a pedra? O custo do cimento, a valoração do metro quadrado a construir? Que capacidade de preservação podemos esperar de homens e mulheres sem gosto, sem capacidade apreciação estética, ocupados em acumular dinheiro como se a moeda fosse a máxima expressão de sua capacidade individual? É a esse tipo de mentalidade que entregamos o futuro de nossa cidade?

Não há, aqui, romantismo dissociado da realidade. A terra vale, é riqueza, é explorada desde sempre. Mas há modos mais inteligentes, harmônicos e sustentáveis de lidar com o patrimônio imobiliário, preservando o que ele guarda de riqueza arquitetônica e histórica. Saibamos, nas próximas eleições, eleger os que podem nos apresentar um futuro de cidade que não abra mão da riqueza deixada pelo seu passado.

 

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