
Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor
Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor
Em meu último artigo, comentei a selvageria de nosso Parlamento ao pautar e aprovar projetos de lei manifestamente contrários ao interesse público por razões oportunistas. Um dos pontos sensíveis do comentário dizia respeito ao PL 1904/24, que busca a equiparação do aborto ao crime de homicídio e a restrição da aplicabilidade dos casos já permitidos de interrupção voluntária da gravidez.
Na prática, o projeto aumenta a gravidade criminal do aborto, ao dobrar a pena hoje prevista no Código Penal, e impossibilita que a mulher possa interromper a gravidez após a 22ª semana de gestão, independentemente da razão. Isso significa dizer que a mulher grávida em razão de um estupro que não teve, por embaraço dos sistemas de saúde ou justiça, a interrupção assegurada precisará gerar um filho de seu estuprador. Também significa dizer que uma gravidez de altíssimo rico à vida da gestante deverá ser sustentada em ameaça à preservação da vida da mulher, considerando-se como efeito colateral aceitável a mortalidade materna.
O leitor precisa considerar que essas hipóteses não são excepcionais. Segundo os pouquíssimos serviços de aborto legal no país, cerca de 1/3 das interrupções que hoje ocorrem no Brasil se dão após 22 semanas de gravidez. No serviço de Uberlândia, o número chega a 90% dos casos. Muitos fatores colaboram para isso: obstáculos criados por médicos, juízes e promotores, que, por razões religiosas, usam o tempo como fator de convencimento da mulher; ou mesmo a ocultação dolosa das famílias nos casos de gravidez na infância em razão de violência sexual.
Sei que muitos leitores têm firmada a convicção contra o aborto por razões morais, e essa convicção é, do ponto de vista do respeito democrático à liberdade de crença, legítima. O que está em jogo é, contudo, uma mudança legislativa muito séria e complexa para que sejam dadas respostas simples como a imputação de pena severa e o encarceramento. Trata-se de uma questão estrutural que conjuga aspectos de saúde pública, saúde materno-infantil e combate à violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres.
A barbaridade do projeto de lei fica ainda mais evidente quando descobrimos que ele foi pautado em regime de urgência como forma de "teste" dirigido ao governo, como afirmou o seu autor, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). O deputado joga com um grave retrocesso legislativo para atiçar sua base eleitoral, exigindo de um governo fraco um aceno de lealdade à base evangélica ultraconservadora.
Os dispositivos legais que estão sob ataque existem em nosso sistema legal desde 1940 e, segundo a maioria da população brasileira, devem permanecer inalterados. É uma medida de humanidade, de respeito à proibição do retrocesso, se considerarmos que temos o direito assegurado ao espaço de proteção legal já consolidado no sistema normativo.
Confio que os leitores razoáveis concordam ser uma excrescência que uma criança de dez anos possa ser obrigada a manter uma gravidez em prejuízo à sua saúde física, mental e ao seu futuro. Confio que a sociedade brasileira é superior ao modo tão imoral, leviano e irresponsável como esse debate está sendo posto no Parlamento.
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