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Quando a lei não resolve, mas agrava
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela USP e professora da Universidade Federal do Ceará. É editora do site bemdito.jor

Quando a lei não resolve, mas agrava

O que testemunhamos é uma profusão de leis ruins, porque inaplicáveis, ou perversas, porque agravam um problema que deveriam atenuar. Assim, um desequilíbrio se instala: o Poder Legislativo produz diplomas legais que descompensam o sistema jurídico, gerando efeito em cadeia a ser administrado pelos Poderes Executivo e Judiciário
Tipo Opinião

O princípio da separação dos poderes foi concebido como técnica para contenção do arbítrio nas origens do estado de direito. Se, sob um aspecto, a técnica permite que os poderes atuem na contenção recíproca, vigiando-se mutuamente, por outro, ela provoca um efeito colateral perverso nas democracias do presente: a irresponsabilidade do Legislativo.

A irresponsabilidade pode ser entendida como um descompromisso de nossos legisladores com os efeitos de sua deliberação e, logo, com a realidade. O que testemunhamos é uma profusão de leis ruins, porque inaplicáveis, ou perversas, porque agravam um problema que deveriam atenuar. Assim, um desequilíbrio se instala: o Poder Legislativo produz diplomas legais que descompensam o sistema jurídico, gerando um efeito em cadeia que precisará ser administrado pelos Poderes Executivo e Judiciário.

Há dois exemplos recentes que ilustram essa tese, permitindo ao leitor entender o argumento: o PL 1904, que criminaliza todos os tipos de aborto após as 22 semanas e que equipara o aborto ao homicídio, e a PEC das Drogas, agora em trâmite acelerado, para criminalização do porte de toda e qualquer quantidade de substância entorpecente. No primeiro exemplo, temos a eleição do tema dos direitos reprodutivos como uma pauta estratégica para a direita radicalizada animar suas claques; o segundo, um assunto que costuma render votos preocupados com a violência e convencidos pelo populismo penal.

As duas propostas legislativas são ruins não porque são conservadoras, mas porque geram consequências estruturais severas que reduzem a racionalidade com que tratamos os dois temas: a violência sexual e a sustentabilidade do sistema penitenciário no contexto da guerra ao crime organizado.

O PL 1904, sobre o aborto, acaso aprovado, gera a possibilidade de criminalização da vítima da violência sexual, uma aberração sob todos os aspectos. Também importa um cenário em que a vítima receberia uma pena maior do que a de seu agressor, o verdadeiro responsável pela gravidez indesejada. A PEC das drogas, por sua vez, ao criminalizar o porte, elimina a diferenciação da gravidade entre porte e tráfico, levando para as prisões um número expressivo de pessoas pelo fato de terem feito uso de uma substância ilícita. O problema não se restringe ao aumento da população carcerária, mas à própria criminalização de uma população jovem negra, na medida em que policiais e juízes são estatisticamente mais tolerantes com usuários brancos e com lastro econômico.

Esses projetos de lei só foram encampados da forma que foram porque a conjuntura alimenta a espetacularização da política para fins eleitorais. São projetos feitos para render engajamento, para alimentar a percepção de que leis duras estão em curso para corrigir os rumos do Brasil. E aí temos o problema: leis punitivas não resolvem (e nunca resolveram) problemas estruturais como a violência. É um estelionato legislativo.

Reféns de parlamentos irresponsáveis, necessitamos cada vez mais do trabalho de um STF lúcido e de um Poder Executivo pragmático que refreie os abusos Legislativo, nos lembrando que a realidade pede menos barulho e mais trabalho sério. n

 

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