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Não há democracia sem a verdade
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). É editora do site bemdito.jor

Não há democracia sem a verdade

É um erro julgar que, por ser uma empresa privada, a Meta, o X ou qualquer corporação equivalente devem ter total liberdade para estabelecer os termos de funcionamento de suas plataformas
Após mudanças em diretrizes da Meta, usuário precisará acionar Justiça para deletar postagens discriminatórias (Foto: Brendan SMIALOWSKI / AFP)
Foto: Brendan SMIALOWSKI / AFP Após mudanças em diretrizes da Meta, usuário precisará acionar Justiça para deletar postagens discriminatórias

O anúncio de Mark Zukenberg sobre o fim do programa de checagem de fatos na Meta, empresa de sua propriedade que controla redes sociais como Facebook e Instagram, foi o fato mais relevante da semana. O potencial corrosivo da decisão do empresário não deve passar despercebido: os brasileiros são usuários inveterados das redes sociais e consomem boa parte de seu dia expostos a seu conteúdo. Qual será o impacto de um ambiente comunicacional desregulado e descontrolado sobre o comportamento das pessoas e sobre a formação de sua visão mundo? Como serão mediados os conflitos envolvendo minorias, mais vulneráveis aos discursos de ódio de amplo engajamento?

O debate é interessante e nos lembra que qualquer democracia só sobrevive à base da proteção da verdade, como esclarece Michiko Kakutani, autora de um dos mais relevantes ensaios sobre o tema. Publicado há alguns anos, o livro "A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump", apresenta um bom diagnóstico do que está em jogo em termos de sociabilidade e política. Ela enfatiza que vivemos uma era de "declínio da verdade", marcada pelo "enfraquecimento do papel dos fatos e das análises".

O interesse político na mentira não é difícil de ser compreendido. Pela manipulação dos afetos e dos medos, um político carismático pode mobilizar a opinião pública para certas pressões que levam a democracia ao seu limite. O fenômeno não é novo e já podia ser claramente observado nas décadas de 30 e 40 do século XX, no contexto da ascensão da extrema-direita na Europa.

Mussolini, Hitler, Franco, Salazar foram alguns dos líderes fascistas que, de algum modo, desinformaram para melhor controlar, criando um ambiente de legitimação social para políticas extremadas de morte e violência.

A estratégia é clara: inflamar "sentimentos de medo, ódio e privação de direitos, oferecendo bodes expiatórios em vez de soluções", como explica Kakutani. No lugar do inimigo, alguns grupos se tornam alvos fáceis: imigrantes, mulheres, negros, indígenas, todos aqueles que, nos últimos anos, pelo avanço da pauta da diversidade, conquistaram espaços maiores de proteção de suas existências.

É um erro julgar que, por ser uma empresa privada, a Meta, o X ou qualquer corporação equivalente devem ter total liberdade para estabelecer os termos de funcionamento de suas plataformas. A partir do momento em que a quase totalidade da população do globo usa e depende desse serviço, a partir do momento que essas plataformas se integraram de forma profunda à esfera pública, servindo de meio de comunicação para governos e instituições, seu funcionamento assume a natureza de serviço de relevante interesse social, sendo sujeito à regulação e controle público. Pensar o contrário significa deixar a democracia completamente vulnerável à manipulação da mentira para obtenção de resultados econômicos e políticos.

Ter direito à liberdade de expressão não significa ter direito a alterar deliberadamente a verdade dos fatos com interesse de desinformar. Todo direito, por mais fundamental que seja, não pode ser exercido com abuso ou em clara afronta ao próprio sistema que torna esse direito garantido e possível.


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