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O STF e os dilemas técnicos de um golpe
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Juliana Diniz é doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC). É editora do site bemdito.jor

O STF e os dilemas técnicos de um golpe

O julgamento é extremamente politizado, como não poderia deixar de ser, mas envolve múltiplas questões de aplicação do Direito Penal que exigem avaliação sóbria e técnica
Tipo Checagem De Fatos
Sessão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) (Foto: Gustavo Moreno/STF)
Foto: Gustavo Moreno/STF Sessão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF)

Mais uma vez o Supremo Tribunal Federal ocupa o centro da atenção política do país. No julgamento histórico da semana, a primeira turma do STF decidiu acolher a denúncia proposta em face do ex-presidente Jair Bolsonaro e seu núcleo mais próximo, dando início ao processo que pode culminar com sua condenação. É um julgamento sensível, por todo o desafio que ele traz aos juízes, ao Ministério Público e aos advogados trabalhando no caso. Gostaria de explorar alguns dos pontos polêmicos.

Começo pelo debate sobre a competência do STF. Há uma discussão, que não é trivial, sobre a adequação do processo tramitar na corte. De certo modo, o próprio tribunal tem responsabilidade na polêmica, pois, ao longo dos últimos anos, teve um entendimento bastante instável sobre a permanência ou não da prerrogativa de foro após o fim do mandato.

A regra da prerrogativa de foro tem uma razão compreensível: busca preservar o equilíbrio e a simetria entre os poderes, evitando que um membro da cúpula do Legislativo ou Executivo possa ser julgado perante a instância inicial do Poder Judiciário, o que traria assimetria pelo risco de que um juízo monocrático interfira nos processos decisórios dos poderes constituídos.

O STF já foi e voltou algumas vezes sobre essa questão técnica: quando o mandato acaba, a prerrogativa de foro para os processos que envolvam fatos ocorridos durante o mandato permanece? Na regra atualmente em vigor, modificada recentemente, sim, o que autorizaria a atuação do Supremo. A mudança recente da regra parece ter sido inspirada por um problema político: a possibilidade de que uma tentativa de golpe de estado em tese encabeçada por um ex-presidente e que envolve severo dano material e simbólico aos três poderes, com planejamento de assassinato de ministros e do presidente eleito, pudesse ser julgada na primeira instância do Poder Judiciário.

Em minha opinião, o julgamento desses fatos na primeira instancia do Judiciário iria na contramão da finalidade da norma que prevê a prerrogativa de foro, de modo que, não fosse o voluntarismo judicial do STF, não deveria causar tanto estranhamento a atuação da Suprema Corte.

Um segundo ponto desafiador diz respeito aos crimes atribuídos aos agora réus. Na denúncia, foram imputados, entre outros, os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e o de golpe de estado. Me parece que a parte mais substancial da defesa vai se concentrar na demonstração de que esses crimes redundam. Sem querer cansar o leitor com tecnicidades, é uma questão importante, porque, caso vigore a condenação pelos dois crimes, teremos uma pena final significativamente maior — e é por essa razão que os já condenados pelo 8 de janeiro têm recebido penas duras em termos de dosimetria.

O julgamento é extremamente politizado, como não poderia deixar de ser, mas envolve múltiplas questões de aplicação do Direito Penal que exigem avaliação sóbria e técnica. O grande desafio dos juristas vai ser explicar à sociedade esses pontos de modo a que possamos avaliar com exatidão o desempenho do Poder Judiciário e, mais do que isso, voltar a crer na observância estrita da legalidade.

 

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