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Não é só uma cena de novela
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Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história

Luana Sampaio arte e cultura

Não é só uma cena de novela

O posicionamento de Buba é certeiro, não abre margens para que outros personagens façam cobranças injustificadas. Não se denuncia intolerância com discursos intolerantes.
Tipo Opinião
Buba, personagem interpretada pela atriz Gabriela Medeiros na novela Renascer (TV Globo). (Foto: Reprodução/TV Globo)
Foto: Reprodução/TV Globo Buba, personagem interpretada pela atriz Gabriela Medeiros na novela Renascer (TV Globo).

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Quando uma novela chega ao seu capítulo de número 100, algo importante vai acontecer. Esse é um marco no termômetro da telenovela e costuma trazer surpresas ou reviravoltas que chacoalham a narrativa e dão um novo tom para a trama. Com Renascer, novela global de horário nobre, não é diferente. Ela chegou ao seu centésimo capítulo no mês passado e parece não ter economizado nas “surpresas”.

Buba, personagem interpretada pela atriz Gabriela Medeiros, viu seus conflitos crescerem em cena nos últimos tempos. Logicamente, a chamada da novela iria destacar os desafios que a jovem enfrenta para chamar a atenção dos espectadores e fazê-los acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. No entanto, enquanto a novela parece tentar combater preconceitos ao colocar em destaque uma mulher trans, interpretando uma mulher trans, na novela, ela escorrega na hora de fazer exatamente isso.

Na chamada que mencionei, o narrador disparou algo como “A verdade sobre Buba vem à tona”. No site da novela, a notícia era “José Augusto congela ao saber que Zé Inocêncio descobriu a verdade sobre Buba”. Que verdade é essa? Por acaso Buba estava enganando alguém, escondendo dinheiro, guardando um segredo ou praticando algum crime moralmente condenável que novelas usualmente exploram? A resposta é não.

Zé Inocêncio, interpretado por Marcos Palmeira na novela Renascer (TV Globo), é sogro de Buba.(Foto: Divulgação/Rede Globo)
Foto: Divulgação/Rede Globo Zé Inocêncio, interpretado por Marcos Palmeira na novela Renascer (TV Globo), é sogro de Buba.

A “verdade” que a novela queria revelar era que Buba, não era Buba, na visão da novela. E com isso, ela dá de ombros para o fato de que pessoas trans são constantemente interrogadas sobre suas origens, colocadas em um lugar de enganação como se não fossem quem são, como se mentissem sobre sua “verdade”. É absurdo e resta pouca margem para licença poética quando uma ficção quer dialogar com debates do mundo real, deixando de lado o cuidado e respeito necessário para fazê-lo. Esse é um ponto importante de entendermos.

Por mais que em outras ocasiões a trama se posicione contrária à transfobia por meio da narrativa ou dos personagens, porquê vender o episódio dessa maneira? No dito capítulo em que a nora de Zé Inocêncio “revela a verdade” para ele, ela o faz dizendo o nome que foi dado à Buba no dia em que nasceu, e segue bradando palavras preconceituosas. Já Zé Inocêncio, ainda que não faça o mesmo, diz em conversa posterior com Buba que ela deveria ter lhe contado sobre tudo, e nesse momento a jovem fortemente rebate: “O senhor exige isso de mais alguém? Eu não tenho obrigação de expor minha intimidade a ninguém”.

Em um mundo que se quer mais justo, igualitário, seguro para pessoas LGBTQIAP+, era essa fala de Buba que deveria ter ganho destaque. Se esse mundo é buscado pela novela, não sei dizer, mas se ambas as cenas foram escritas pela mesma equipe, questiono o porquê de a novela usar de preconceito para, supostamente, combatê-lo. Importa pouco que ele seja disseminado pela vilã ou por um narrador “externo” da novela. Toda obra, seja de ficção ou não, é feita e difundida a partir de escolhas que passam de mão em mão até se transformarem em cena. Nesse caso, não sabemos que caminho essas cenas percorreram, mas estamos certos de que, aquele que foi escolhido, não era o único.

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