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Um besteirol não faz mal a ninguém
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Luana Sampaio é pesquisadora e diretora de criação audiovisual do O POVO. É doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com pós-graduação em Artes Criativas na Deakin University, na Austrália. Escreve sobre memória, testemunho, imagem, cinema e história

Luana Sampaio arte e cultura

Um besteirol não faz mal a ninguém

As pessoas falam bastante de ócio criativo. Vou falar só do ócio, mesmo.
Tipo Crônica
Já viu um besteirol hoje? (Foto: Reprodução Internet)
Foto: Reprodução Internet Já viu um besteirol hoje?

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Estava assistindo a um reality show daqueles bem água com açúcar até que escuto: “eu não entendo como você gosta disso”. A minha resposta foi rápida e já estava na ponta da língua, afinal eu mesma já tinha me feito esse questionamento.

“É que eu não preciso pensar”, disse. Eu só quero passar o tempo depois de um dia longo em que estou muito acesa para dormir, e cansada demais para servir ao meu País. Eu só quero ver um besteirol bacana que tenha um mínimo de respeito pelas pessoas envolvidas, pra daí ser realmente agradável.

Nesses momentos parte do meu sistema desliga. Estou tão acostumada a reparar em tudo em termos de imagem e som, que quando vou ver filmes por lazer preciso fazer um pequeno acordo comigo mesma de desligar a documentarista e pesquisadora por um instante. É também por isso que vejo esses programas, eles estão um passo adiante disso.


Nailed It é um reality show da Netflix em que pessoas nada habilidosas tentam reproduzir bolos não tão complexos. O resultado são comidas de aparência horrorosa e uma boa dose de divertimento.(Foto: Reprodução Internet)
Foto: Reprodução Internet Nailed It é um reality show da Netflix em que pessoas nada habilidosas tentam reproduzir bolos não tão complexos. O resultado são comidas de aparência horrorosa e uma boa dose de divertimento.

Porque não assisto pra me divertir. Assisto pra me dar permissão de não reparar na narrativa, na montagem, nos enquadramentos, na luz, nas performances de si que aquelas pessoas fazem e em todo o aparato daquela produção. Conversando com um amigo autor de quadrinhos, ele disse o mesmo: só leio quadrinhos pra trabalho, não consigo ler como hobby. Outras pessoas do cinema já comentaram comigo o quanto não assistem mais filmes por lazer, e temo que nós não estejamos falando o suficiente o quanto isso é normal.

Nós amamos o que fazemos. E como todo amor, ele tem fronteiras. Altera o modo como lidamos com o outro. Exige de nós um outro posicionamento. Desperta em nós sentimentos diferentes. Faço e estudo documentários, mas preciso dizer: não é sempre que gosto de vê-los. E por precisar vê-los, evito quanto posso escolher.

Em nada isso diminui o meu profissionalismo ou o comprometimento do meu colega. Basta você se por no nosso lugar, caso seja uma dentista, enfermeira, educadora física. Você faz coisas do seu momento de trabalho, nos seus momentos livres? Não é porque trabalhamos com arte e subjetividade, que nossa relação com esse trabalho também não é técnica, científica, série.

E não tem problema, faz parte. Mas talvez a gente precise falar um pouco mais sobre isso pra nos sentirmos menos culpados ou sozinhos. A criação artística é inspiração e é técnica. É subjetividade e é processo estrutural. É sorte e é experiência. É prazer e é perspicácia. Trabalho criativo é trabalho.

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