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Vi coisas lindas de pretos e bichas
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Magela Lima é jornalista e professor do Centro Universitário 7 de Setembro (Uni7), doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Magela Lima opinião

Vi coisas lindas de pretos e bichas

Com muito atraso, o que vemos atualmente é um transbordar de poéticas e éticas que as travas do colonial e do patriarcal já não conseguem conter. É o início de um processo, um ponto de virada
Tipo Opinião

No século passado, eu e um amigo disputávamos para ver quem assistia a mais peças de teatro durante o ano. A gente se divertia tanto, com tão pouco, Rogério. A lista hoje já não existe mais, nem o parceiro de peleja, o que é muito pior. Eu, no entanto, sigo medindo minhas alegrias pelo número de espetáculos que vejo. Em dias de virar memória, 2024 foi um ano bom, bem acima da média até, em que pretos e bichas me fizeram muito feliz. O teatro está tomado por questões de raça e de gênero, e isso diz muito sobre o tempo e o mundo em que vivemos.

A aparente recorrência de temas e abordagens, quando colocada em perspectiva, fala, no caso do Brasil, muito da nossa cena contemporânea, sim, mas, ao mesmo tempo, revira e provoca nossos passados. Com muito atraso, o que vemos atualmente é um transbordar de poéticas e éticas que as travas do colonial e do patriarcal já não conseguem conter. É o início de um processo, um ponto de virada. Ao espectador desatento, o volume de trabalhos com um mesmo registro pode até parecer expressivo. Não é. Depois de tanto silêncio, há muito ainda para se gritar.

Dia desses, deixei a apresentação de “Macacos”, de Clayton Nascimento, cansado por mim e por ele. São mais de três horas de uma encenação vigorosa. Nada, perto de séculos de escravidão que o povo negro enfrentou por aqui. A dor e a beleza da diáspora africana são um horizonte infinito e potente. Por mais que “Ninguém sabe meu nome”, de Ana Carbatti, lembre “Macacos” pela forma e pelas questões que levanta, toca por outras sensibilidades. O nosso teatro negro contemporâneo é um alerta, uma lição e também uma festa. Vou lembrar sempre de 2024 como o ano em que vi Maurício Tizumba brilhar como um rei em “Herança”.

Também vou guardar com carinho esse ano pelo reencontro com Ricardo Tabosa e Ari Areia. “Metendo a Boca” e “Expurgo” são dois belos exemplos de um teatro tão profundo quanto delicado. Os atores compartilham, em primeiríssima pessoa, dramas que acompanham a afirmação e a existência de boa parte dos homens gays. Não, nós não sofremos sozinhos nem precisamos mais sofrer escondidos. O teatro de Ricardo e Ari é engajado, oferece um abraço tantas vezes negado, sem abrir mão de uma cena absolutamente rigorosa. Não, não é só um tema. É teatro, vivo e urgente, cada vez mais necessário.

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