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No falar do apito
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Mailson Furtado é escritor, dentre outras obras, de À Cidade (livro vencedor do Prêmio Jabuti 2018 – categorias Poesia e livro do Ano). Em Varjota-CE, fundou a CIA teatral Criando Arte, em 2006, onde realiza atividades de ator, diretor e dramaturgo, e é produtor cultural da Casa de Arte CriAr. Mailson escreve, quinzenalmente, crônicas sobre futebol e outros temas

No falar do apito

O "juiz" escalado pr’aquela tarde, por outros problemas, não compareceu. João Carlos, tomando pra si a responsabilidade, puxa o apito e vai
Tipo Crônica
João Carlos foi árbitro nos torneios em Varjota, no interior do Ceará (Foto: Baldo Feitosa)
Foto: Baldo Feitosa João Carlos foi árbitro nos torneios em Varjota, no interior do Ceará

Justamente numa várzea, ou na “pequena várzea” do rio Acaraú, significado do nome da cidade de Varjota, nascia, em 1962, o menino João Carlos. Filho de sêo João Camelo e dona Marieta, migrantes operários das frentes de serviço do DNOCS para a construção do açude Araras, que ali naquele sertão fixaram moradia.

João Carlos nascera surdo, nada que o impedisse de suas traquinagens de menino e que, desde os 8 anos de idade, já corresse atrás de uma bola, junto dos amigos nos campinhos de barro batido. Mesmo diante das dificuldades de inclusão no sertão cearense nos anos de 1970-80, ele não esmoreceu, alfabetizou-se e, em 1989, concluiu o segundo grau.

Autodidata, tornou-se eletricista, nunca deixando, porém, que os finais de semana fossem ocupados por outra coisa que não futebol. Dona Leni, sua esposa, brinca: “Em 40 anos de relacionamento, a bola, até hoje, foi minha única rival”.

Por longos anos, João Carlos jogou nos principais times amadores da cidade, memorando com maior afeto, o Remo, clube ligado a pescadores e trabalhadores do DNOCS, fundadores do lugar. Até que, em 1992, uma lesão no pé obrigou-o a uma parada brusca.

O retorno não demoraria. Poucos meses depois, ao campo lá estava.

Times postos. Bola ao centro. Espera. Quede o apito? Não vinha. O “juiz” escalado pr’aquela tarde, por outros problemas, não compareceu. João Carlos, tomando pra si a responsabilidade, puxa o apito e vai.

O que seria apenas um jogo torna-se seu novo ofício pelas próximas três décadas: o de árbitro “oficial” dos torneios e amistosos de Varjota, não havendo um fim de semana que não apitasse, no mínimo, dois jogos por dia. Enquanto o sol não se punha, a bola corria e o apito troava. O sucesso foi tanto que convites iam e vinham de cidades vizinhas, dos sertões até as serras.

Brincando, relata que pedidos pra uma ajudinha aqui, outra ali, não faltaram. “Aqui, não!”, “Aqui, não!”, sinaliza – nunca aceitando. Ganhou a confiança de todos. Nas confusões irremediáveis e inerentes de sua nova posição, quando os cartões não davam conta, se não podia retrucar a briga com xingos à altura, havia sempre quem o defendesse, sendo do time “favorecido” ou não. “Expulsava todos!”. “Todos!”, ri. Todos se acalmavam e o jogo seguia.

Dali, junto aos dois times, João Carlos partia, com a noite já posta, imbricada a um ou outro forró regado à cerveja, para que a outra semana pudesse se anunciar. Assim, a sua rotina por 27 anos.

Até que, em 2019, já sem pernas para o que o apito precisava dizer, realiza seu último jogo e, ali, naquela pequena várzea do Acaraú, um silêncio poucas vezes ecoou tanto, logo que João Carlos o seu apito calou.

Foto do Mailson Furtado

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