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A quinta-feira de sempre
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Mailson Furtado é escritor, dentre outras obras, de À Cidade (livro vencedor do Prêmio Jabuti 2018 – categorias Poesia e livro do Ano). Em Varjota-CE, fundou a CIA teatral Criando Arte, em 2006, onde realiza atividades de ator, diretor e dramaturgo, e é produtor cultural da Casa de Arte CriAr. Mailson escreve, quinzenalmente, crônicas sobre futebol e outros temas

A quinta-feira de sempre

Com duas varas apoiadas a três ou quatro pedras, as traves estavam postas, e sem tempo o jogo começava, seguindo um ou outro grito de gol

Era quinta-feira santa, e mãe ajeitava as malas para, em família, celebrar os “dias grandes” na casa de meu avô, na pequena Cabaceiras, interior de Reriutaba, torrão em que viveu até mudar-se para Varjota.

Era de praxe, todo ano o mesmo destino, e eu bem que gostava, ali junto dos primos, com o Juré ainda escorrendo, com água já ralinha colhida às grotas da Ibiapaba, eu brincava. Às sombras das mangueiras, desbravávamos carreiras sem partida ou chegada, até onde o fôlego dava condição. Na volta, um último mergulho no rio, para que o restante do dia pudesse seguir.

Destocávamos as pequenas raízes inauguradas pelas primeiras chuvas do ano, do terreno em frente da casa de vô Miguel, e lá, com duas varas apoiadas a três ou quatro pedras, as traves estavam postas, e sem tempo o jogo começava, seguindo um ou outro grito de gol, com o fim marcado pelo esconder do sol, único capaz de acabar com tudo aquilo.

Tão logo as lamparinas ganhavam lugar e as cadeiras tomavam o alpendre com as gentes grandes murmurando converseiros. E nós ali, pequenos, ouvindo tudo, desentendendo.

“Amanhã, sexta da paixão, botem esses meninos pra sossegar. Donde se viu tá procurando arte em dias grandes? Nem hoje, era pra estarem nessas estripulias. E como mudam os tempos. Antes nem se molhar a gente podia. Pegar numa vassoura, nunca! Hoje estão esses meninos chutando uma bola”, dizia minha bisavó, fazendo questão que a gente ouvisse. E ouvíamos.

Sobre a quinta, mãe e minhas tias faziam ouvido de mercador, e tudo aquilo era possível. Na sexta, não. Dia pesado, com os adultos em jejum. Dia de pouco riso, e dele pouco lembro.

E passados tantos anos, é mais uma quinta-feira, a mesma (?), e já não sei se a vida me deixará brincar ou mesmo gritar um gol neste hoje. Não sendo possível, seguirá tatuada a lembrança daquele menino com a esperança de que ano que vem no mesmo dia, tudo de novo.

Foto do Mailson Furtado

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