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Líquida ametista
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Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.

Líquida ametista

Volto ao tempo em que outros decidiram os itens a serem consumidos nas refeições dentro e fora de casa
Tipo Crônica
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Memórias que saem da lancheira (Foto: Adobe Stock)
Foto: Adobe Stock Memórias que saem da lancheira

 

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O cheiro do refrigerante de uva, os olhos fechando, e eu transportada à hora do recreio, sentada no chão, com a lancheira de alça branca no colo. O líquido violáceo no recipiente de plástico não fazia parte dela, estava nas mãos ao lado. Poderia ter pedido um gole, mas não o fiz.

Foi em época tenra demais da minha vida, quando não sabemos direito os nomes dos colegas nem os distinguimos dos amigos. Os dedos vizinhos desenroscaram com voltas largas a tampa da garrafa transparente e ela serviu de copo, onde foi despejada a ostentação, líquida ametista de fazer salivar. Depois acompanhei o movimento de rasgar a embalagem metálica dos recheados.

Suspirei, destravando a merendeira. Tirei os alimentos saudáveis que nada me apeteciam, tanto que a memória apagou esse registro me impossibilitando uma recordação mais exata. Eu poderia ter pedido um biscoito daquele pacote, mas não o fiz. Faltava maturidade para a desenvoltura necessária ao ato, para conseguir articular as palavras certas, para disfarçar a falta de coragem e o desejo de trocar a nutrição balanceada pelo gaseificado coquetel de corante, acidulante, aromatizante, e pelas gorduras saturadas, açúcares e ácidos graxos em alto teor de concentração.

Decorridas décadas, e mesmo na atual abstinência voluntária relativa a todos os tipos de refri, o chiado de uma tampinha sendo aberta perto de mim é suficiente para que ocorra a abdução instantânea, o deslocamento imediato a uma fase longínqua. Volto ao tempo em que outros decidiram os itens a serem consumidos nas refeições dentro e fora de casa.

Um período de profunda solidão, comum a muitos de nós, no início da descoberta do mundo, antes da conquista da autonomia para o exercício das próprias escolhas. Naquela fração da minha existência, eu não supunha um futuro distante no qual declinaria das ofertas frequentes, rejeitando com tranquila convicção o sabor artificial, a que olfato e visão insistem em me render.

Foto do Marília Lovatel

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