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A renda, a rede e a garrafa
Foto de Marília Lovatel
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Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.

A renda, a rede e a garrafa

Arte da nossa gente. É matéria literária e, sobretudo, humana, que eu guardo na alma e nas páginas dos meus livros
Tipo Crônica
Rendeiras da Prainha, Aquiraz. Na imagem, Maria Cleide dos Santos (Foto: KLÉBER A. GONÇALVES)
Foto: KLÉBER A. GONÇALVES Rendeiras da Prainha, Aquiraz. Na imagem, Maria Cleide dos Santos

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Meu encontro com D. Neném foi emocionante. Eu a conheci depois de escrever "A menina dos sonhos de renda", narrativa em versos inspirada em uma notícia de jornal sobre as rendeiras que, por quase oito anos, teceram a maior renda do mundo, recorde registrado no Guinness Book. Somente após a publicação surgiu a oportunidade de ir até ela no Centro de Rendeiras da Prainha, em Aquiraz.

Estava sentada junto do enorme carretel, estrutura de madeira em que originalmente se enrolaram mil metros de fio elétrico e que agora exibe a renda gigante, enquanto ela continua a crescer da almofada de bilros. Do sorriso dela com meu livro aberto em suas mãos eu nunca me esqueci.

Em outra ocasião, veio Seu Francisco. Ele andava na areia branca, a pisada fazendo correr as Marias-Farinhas, o braço estendido pelo peso do balaio, os dedos apertando a alça forrada de pano para não ferir os calos da pele curtida. Dentro do cesto, o resultado de singular pescaria: conchas róseas, alaranjadas, para servir de artigos de decoração.

Ele viu o meu interesse, se aproximou e lhe fiz uma série de perguntas. Ouvi que fora pescador a vida inteira e que na velhice não tinha mais saúde para a lida — aguentar as horas na jangada, os dias (e noites) no barco, a coluna não coopera.

Achou a solução de catar as conchas maiores, desocupadas carapaças de moluscos marinhos, dessas de ouvir o oceano perto do ouvido, ou possíveis berços de pérolas, limpá-las bem e oferecê-las. Vende pouco, mas ao menos continua perto do mar. Escolhi uma. Cor, tamanho e formato da concha da ficção em "A menina dos sonhos de renda". Não me disse o preço, não quis receber pagamento. É um presente, explicou o gesto, a gratidão. Pela primeira vez alguém na praia quisera saber sobre ele.

Espero um dia homenageá-lo com a minha escrita, como fiz com D. Joana. Pioneira na confecção das garrafinhas de areia colorida, sua história constituiu a base para a tecitura de Grãos de paisagens. Uma pena não ter chegado a conhecê-la. Ela deixou de herança uma bela tradição, hoje espalhada pelo Nordeste todo e respondendo pelo sustento de inúmeras famílias.

A renda, a rede e a garrafa têm em comum a arte da nossa gente. É matéria literária e, sobretudo, humana, que eu guardo na alma e nas páginas dos meus livros.

Foto do Marília Lovatel

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