Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.
O sobrado do século XIX é vizinho à pequena casa onde nasceu o meu avô materno. Coincidências existem? Cresci admirando a hóspede ilustre da tia Célia de Mattos Brito, que, de tempos em tempos, trocava as pedras e o calor do sertão pelas flores e pela neblina da serra
Foto: Marília Lovatel
Sobrado dos Mattos Brito, em Guaramiranga
. Em 1992, o portão do Solar dos Mattos Brito se abriu para uma jovem aspirante a escritora ouvir da proprietária — e prima de Rachel de Queiroz — sobre a possibilidade de conhecer a imortal pioneira. “Adivinha quem está aqui em casa passando uns dias? Venha amanhã e vou apresentá-las”, tia Célia me propôs; tia por afinidade, uma tia enorme, muito alta e larga de quadris e de coração. Dela ganhávamos abraços e dindins. A lembrança da porta do congelador raspando o gelo acumulado no compartimento, sempre cheio de nevados saquinhos coloridos, ainda me traz um gosto de infância.
A tia Célia não se casou, não teve filhos e nos tratava como sobrinhos — isso incluía boa parte das crianças que costumavam veranear em Guaramiranga. Nas ruas entrecruzadas da pequena cidade, que teve entre os fundadores o seu bisavô, a menina Rachel brincou muitas vezes.
O sobrado do século XIX é vizinho à pequena casa onde nasceu o meu avô materno. Coincidências existem? Cresci admirando a hóspede ilustre da tia Célia de Mattos Brito, que, de tempos em tempos, trocava as pedras e o calor do sertão pelas flores e pela neblina da serra. Por pouco não nos vimos, a autora de O Quinze e eu, naquela época em que os meus anos contavam quase os mesmos com os quais ela publicou sua primeira obra. Nosso encontro não seria ali, mas nos livros: eu lendo a produção de uma vida inteira; ela lendo os rascunhos de uma estreante.
Foi a tia enorme que, há 32 anos, abriu o portão do seu Solar também para me dizer: ficaria para outra vez, a prima — indisposta — repousava. Prevendo a minha frustração e sabedora dos meus exercícios literários, ela prometeu mostrar os meus textos, assim que os recebesse de mim. Lembrei-me do envelope pardo — sem razão, eu o trouxe na viagem —, e ele esperava no banco do carro de meu pai, estacionado ali perto.
Corri na calçada até a esquina e voltei muito antes do que ela imaginou para entregar as páginas datilografadas, repletas de rasuras. Tão feliz eu estava com a oportunidade que nem me dei conta de que, num mundo pré-smartphone e pré-notebook, eu não guardara cópia. Semanas depois, recebi aliviada o aviso para buscar meu original. Rachel tinha regressado ao Rio, onde morava, e deixara por escrito as suas impressões. Li emocionada as palavras generosas, as frases manuscritas no papel timbrado da ABL.
Hoje, durante as férias, observo o mesmo portão, sem a tia Célia, sem Rachel, sem meu pai. E me dirijo à Biblioteca Municipal Rui Barbosa tendo nas mãos alguns dos livros que publiquei, ao longo dos últimos 14 anos, e que serão parte do acervo. O primeiro deles traz na contracapa a cartinha que Rachel me escreveu. Sua foto estampa a fachada do Teatro que ela nomeia. Sua presença paira no ar frio. Eu a sinto, assim como papai e a tia Célia. Entrego meus livros e sorrio.
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