Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.
Minha mãe reinventa o mecanismo de viver. De virtual, basta a biblioteca de músicas, o uso do aplicativo, da plataforma que lhe permite ouvir com saudade as canções de muitas décadas
Foto: Samuel Setubal
FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 06-06-2024: Ciência e Saúde sobre leitura entrevista Madalena Herminio, 23 anos, contando um pouco sobre a experiências dela com leitura e como ela faz a diferença na vida dela, na Biblioteca Pública do Ceará. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)
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Preciso de um dicionário, ela me disse. De preferência, grande e de capa dura, completou. Estranhei o pedido de mamãe porque acreditava na sua plena adaptação à caixinha de som inteligente, pronta para responder às suas dúvidas, ao comando de voz.
O que poderia ser mais prático e rápido? Dias depois, ouvi o elogio por conseguir atender ao seu desejo - não foi fácil arranjar um calendário de mesa impresso. Comecei a suspeitar de que havia uma relação entre essas solicitações e o reloginho - analógico, com o pequeno martelo entre as duas campainhas do modelo retrô - que lhe dei de presente.
De alguma forma, os ponteiros rodaram ao contrário, criando nela a necessidade de possuir objetos que a ajudassem a reter o tempo nas mãos.
Virar as páginas para ler o significado de um verbete, encontrar o sentido de uma palavra nova ou esquecida, dar corda nas engrenagens da máquina para que os ponteiros dos segundos, minutos e horas trabalhem corretamente, conferir, sem pressionar as telas ou apertar as teclas, o dia do mês e da semana são maneiras de ela se conectar ao real.
De virtual, basta a biblioteca de músicas, o uso do aplicativo, da plataforma que lhe permite ouvir com saudade as canções de muitas décadas. Essas escolhas constituem mais do que um anacronismo voluntário, é um protesto, uma recusa à ditadura digital, aos controles tão remotos que vivemos apontando o errado, trocando, confundido um com o outro: o branco, o preto, o maior, o menor. Há momentos em que nenhum funciona.
Ela me diz que já foi mais simples achar o canal para assistir à TV, e abrir e fechar a porta do apartamento não exigia da memória uma senha, apenas a chave, os dentes do metal no encaixe, no giro para o lado certo, direita ou esquerda. Tentativa e revelação, como fazem as crianças ao desmontar e descobrir tudo por dentro. Minha mãe reinventa o mecanismo de viver.
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