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A natureza de meu pai
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Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.

A natureza de meu pai

Tudo na natureza lembra meu pai. Principalmente as pétalas aladas. Elas me trazem a certeza dos ciclos, das mudanças, de que o tempo age em prol do novo, da beleza das cores e da suavidade do voo
Tipo Crônica
Borboleta asa-de-vidro ou Pseudoscada erruca na Reserva Natural da Serra das Almas, em Crateús (Foto: Romilson Lopes/Acervo Pessoal)
Foto: Romilson Lopes/Acervo Pessoal Borboleta asa-de-vidro ou Pseudoscada erruca na Reserva Natural da Serra das Almas, em Crateús



A primeira vez que vi um casulo achei estranhíssima a sua forma amarrotada e perguntei ao meu pai o que era aquilo. Um casulo, ele me respondeu. E continuou a ajustar os caules, recolher as folhas mortas, podar as roseiras, como se no mundo não houvesse nada mais que aquele pedaço de terra adubada e as flores viçosas sob os seus cuidados. Somente desviou a atenção para mim quando eu quis ver com os dedos a proteção áspera, feia, pendendo do galho feito uma fruta murcha, pequeno embrulho descuidado, pacote sem capricho. Não toque! Recolhi a mão.

E ele entendeu que a filha não arredaria dali até receber uma boa explicação para acalmar a curiosidade de menina. Tem vida guardada aí, ele me disse. Sabe o que vai sair de dentro? — se rendeu ao assunto mostrando com os dedos e os olhos azulando embaixo da aba do chapéu. Contando que o bicho correspondesse à rudeza da cobertura, imaginei terríveis possibilidades: uma aranha caranguejeira, um escorpião gigante, um escaravelho, inseto peçonhento, desses com garras de lagosta e ferrões de vespas venenosas. Uma borboleta. Se tivermos sorte, vamos vê-la brincar aqui no jardim. Quando ela sai? Quando estiver pronta. Quando estará pronta? Quando terminar a metamorfose. Não apresse ou ela morre.

Assim a palavra metamorfose se inaugurou em meu vocabulário. E aprendi na aula prática o conceito de transformação. Tudo na natureza lembra meu pai. Principalmente as pétalas aladas. Elas me trazem a certeza dos ciclos, das mudanças, de que o tempo age em prol do novo, da beleza das cores e da suavidade do voo. Meu pai teceu sem pressa o casulo, durante 90 anos, e alçou-se ao céu para cuidar de um jardim maior. Em dias como hoje, lembro que não preciso tocar para sentir a sua vida dentro da minha.

Foto do Marília Lovatel

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