Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.
Tudo na natureza lembra meu pai. Principalmente as pétalas aladas. Elas me trazem a certeza dos ciclos, das mudanças, de que o tempo age em prol do novo, da beleza das cores e da suavidade do voo
Foto: Romilson Lopes/Acervo Pessoal
Borboleta asa-de-vidro ou Pseudoscada erruca
A primeira vez que vi um casulo achei estranhíssima a sua forma amarrotada e perguntei ao meu pai o que era aquilo. Um casulo, ele me respondeu. E continuou a ajustar os caules, recolher as folhas mortas, podar as roseiras, como se no mundo não houvesse nada mais que aquele pedaço de terra adubada e as flores viçosas sob os seus cuidados. Somente desviou a atenção para mim quando eu quis ver com os dedos a proteção áspera, feia, pendendo do galho feito uma fruta murcha, pequeno embrulho descuidado, pacote sem capricho. Não toque! Recolhi a mão.
E ele entendeu que a filha não arredaria dali até receber uma boa explicação para acalmar a curiosidade de menina. Tem vida guardada aí, ele me disse. Sabe o que vai sair de dentro? — se rendeu ao assunto mostrando com os dedos e os olhos azulando embaixo da aba do chapéu. Contando que o bicho correspondesse à rudeza da cobertura, imaginei terríveis possibilidades: uma aranha caranguejeira, um escorpião gigante, um escaravelho, inseto peçonhento, desses com garras de lagosta e ferrões de vespas venenosas. Uma borboleta. Se tivermos sorte, vamos vê-la brincar aqui no jardim. Quando ela sai? Quando estiver pronta. Quando estará pronta? Quando terminar a metamorfose. Não apresse ou ela morre.
Assim a palavra metamorfose se inaugurou em meu vocabulário. E aprendi na aula prática o conceito de transformação. Tudo na natureza lembra meu pai. Principalmente as pétalas aladas. Elas me trazem a certeza dos ciclos, das mudanças, de que o tempo age em prol do novo, da beleza das cores e da suavidade do voo. Meu pai teceu sem pressa o casulo, durante 90 anos, e alçou-se ao céu para cuidar de um jardim maior. Em dias como hoje, lembro que não preciso tocar para sentir a sua vida dentro da minha.
A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página
e clique no sino para receber notificações.
Esse conteúdo é de acesso exclusivo aos assinantes do OP+
Filmes, documentários, clube de descontos, reportagens, colunistas, jornal e muito mais
Conteúdo exclusivo para assinantes do OPOVO+. Já é assinante?
Entrar.
Estamos disponibilizando gratuitamente um conteúdo de acesso exclusivo de assinantes. Para mais colunas, vídeos e reportagens especiais como essas assine OPOVO +.