Marília Lovatel é escritora, cursou letras na Uece e é mestre em literatura pela UFC. É professora de pós-graduação em escrita literária e redatora publicitária. Tem livros publicados por diversas editoras, entre elas, Scipione, Moderna, EDR, Armazém da Cultura e Aliás. Vários dos seus 12 títulos são adotados em escolas de todo o país, tendo integrado 2 vezes o Catálogo de Bolonha, 2 vezes o PNLD Literário e sido finalista do Prêmio Jabuti 2017.
“De presente, o agora” é o tema da 26ª Casa Cor, representado pelo trabalho de 52 profissionais. E antes que me perguntem a razão do meu súbito interesse pela Arquitetura, pelo Design de Interiores, pelo Paisagismo, respondo que nada há de súbito. Ao contrário, já conferi algumas edições do evento, e sempre me encanta o trabalho dos artistas que escrevem com objetos e com a natureza, compõem narrativas concretas, criam a fantasia para que nos imaginemos em diferentes cenários.
Muitas vezes é puro exercício ficcional; outras, uma realidade que começa a ser traçada na observação de novas possibilidades. Pensando assim, a Arquitetura tem muito de Literatura. E vice-versa. A criação dos espaços, dos tempos, dos enredos permeia os dois fazeres. E isso, por si só, já vale a minha atenção. No entanto, entrei na Casa Cor 2024 pela porta da Literatura para conversar sobre o meu livro “A memória das coisas”.
Entendo que nenhuma literatura se faz de modo isolado, que ela tanto conversa com outras artes quanto dialoga internamente, um texto ressoa no outro. No próximo ano, “A memória das coisas” completará 10 anos. Um livro que faz aniversário. Um objeto sustenta em uma década a memória do que vivi a partir de suas histórias. É fato que ando presa ao posfácio de Clarisse Fukelman, em “Laços de família”, ao levantamento das peças e dos utensílios que ela faz nos contos da obra clariceana: “penteadeira, espelho, vaso, sapatos, pá, mala, relógio, óculos, máscara, pires, chapéu, grade, bolo, faca”.
No texto depois do texto, Fukelman se refere à “espessura afetiva” dos objetos. Ela nos diz que “a vida e os afetos se inscrevem em objetos”. Em “A memória das coisas”, os objetos são: o caminhão, o armário, a sombrinha, a foice, o rádio, o oratório, a carta, o botão, o abajur, o perfume, o caleidoscópio, o camafeu, o diário, a tesoura, o quadro, o xale, o relógio, o bule, o telefone, a aliança, a caixinha de música, a pipa, a boneca, o batom, o sapato, o sino, o livro. Eles cumprem um papel tão determinante materializando as nossas lembranças, que basta mencioná-los, listá-los, para as memórias serem evocadas.
Ao escrever “A memória das coisas”, construí os universos de cada objeto e dei voz a eles a partir de memórias minhas, memórias emprestadas, memórias inventadas. E as histórias foram nascendo, e uma teia de relações foi se formando, até que me disseram: “é um romance disfarçado de coletânea de contos”. Nem discuti. O texto literário pertence ao leitor tanto quanto os espaços propostos por arquitetos, designers e paisagistas terão o sentido e a personalidade de quem vier a ocupá-los. É o leitor que dá o sentido. É o uso que fazemos dos espaços e dos objetos que importa.
Tomemos o livro da Clarice por exemplo. O último conto se chama “O búfalo”, que é um animal. Mas a história que envolve esse búfalo é, digamos, um objeto cultural, que me levou a criar uma história com um búfalo que se opõe em sua doçura ao búfalo da Clarice, com quem a personagem dela aprende a odiar. E a minha história levou a ceramista Flávia Lovatel, minha amada irmã, a criar uma peça. Tudo está em transformação. O búfalo não é mais da Clarice, nem meu, nem da minha irmã, porque é objeto desta reflexão que está produzindo memória. A vida corre e nos escapa com tanta fugacidade que precisamos dos objetos para reter o tempo, para voltar no tempo, nos projetar no tempo.
“De presente, o agora.”
No futuro, que objetos vão evocar nos outros lembranças nossas?
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