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Garças-azuis
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Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.

Garças-azuis

"Confesso a emoção de acompanhar Ana Magdalena Bach nos retornos anuais à ilha onde a mãe está sepultada para depositar flores no túmulo..."
Garça-Azul (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Garça-Azul

Na primeira crônica do ano, compartilho a experiência da leitura do último romance escrito por Gabriel García Márquez, “Em agosto nos vemos”, de publicação póstuma. E nesse fato reside um ponto que merece reflexão: lançar um livro após a morte do escritor.

Se de um lado temos os leitores ávidos por uma oportunidade de estar na companhia do gênio uma vez mais, de outro há uma questão de ordem ética relacionada à ausência do autor para aprovar ou vetar a apresentação da obra ao mundo.

O que fica abandonado nas gavetas, nas pastas físicas ou virtuais foi deixado ali por uma razão e pode representar um pesadelo para quem passou a vida escrevendo, reescrevendo sob implacável autocrítica, no intuito de construir o nome.

“Doze contos peregrinos foram redigidos ao longo de dezoito anos. Foram chamados peregrinos, já que, para que fossem publicados, os rascunhos originais sofreram um vaivém criativo de longa duração, indo da mente do criador (que em várias ocasiões desistia e voltava ao começo) às páginas de cadernos de notas e ao cesto do lixo". Isso está na Internet e nos dá a noção do quão delicado e complexo é considerar algo pronto, concluso, em se tratando de literatura.

Eu mesma, na distância abissal que me separa de Gabo, engavetei três romances, fatiei uma quarta tentativa e a transformei; os capítulos viraram coletânea de contos. Não me agrada a ideia de que originais inacabados, incompletos ou não aperfeiçoados o suficiente possam ser retirados do esconderijo à revelia.

O Nobel colombiano expressou o seu veredito aos filhos: “Esse livro não presta. Tem que ser destruído” — Rodrigo e Gonzalo contam no prefácio. Mas também ressaltam que a perda de memória que o pai enfrentou no fim pode explicar um excesso de rigor responsável por privar o público de ler a história inédita, com o que há de mais relevante na escrita consagrada: “a capacidade de invenção, a narração cativante, o entendimento acerca do ser humano e o carinho por suas vivências e desventuras, sobretudo no amor".

Confesso a emoção de acompanhar Ana Magdalena Bach nos retornos anuais à ilha onde a mãe está sepultada para depositar flores no túmulo. E que, logo nas páginas de abertura, fui capturada pela imagem da “avenida de palmeiras-reais onde ficavam as praias e os hotéis turísticos, entre o mar aberto e uma lagoa interior povoada de garças-azuis”.

Ao término, o dilema se instalou, fiquei sem saber se dou razão aos irmãos. Como as aves celestes nas palavras e na foto, não sei se é justo ler assim, na expectativa da confirmação da obra-prima. Diante da rigidez da edição em capa dura, tive a sensação nostálgica de lápide. Nela, não depositei flores, fiz minha oração no correr das linhas, em particular respeitosa homenagem.

Foto do Marília Lovatel

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