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A enchente e o terremoto
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É mestre em Direito pela UFC e doutorado em Direito pela Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main. Atualmente é professor da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de Fortaleza

A enchente e o terremoto

Quem pensava que o Iluminismo seria a vitória definitiva da razão, pode começar a rever suas posições. E quem esperava que comportamentos supersticiosos da segunda metade do século 18 era coisa de um longínquo passado, verterá lágrimas amargas de decepção com o humano
Tipo Opinião
ELDORADO do Sul, Rio Grande do Sul (Foto: Nelson ALMEIDA / AFP)
Foto: Nelson ALMEIDA / AFP ELDORADO do Sul, Rio Grande do Sul

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Notícias de religiosos e influencers (que alimentam espertos e idioters!) a culparem os gaúchos por sua tragédia das enchentes têm sido frequentes. A responsabilidade do povo do Rio Grande do Sul residiria na sua falta de fé, em práticas satânicas, ou ainda em castigo divino pelo elevado número de praticantes de religiões afrobrasileiras.

Quem pensava que o Iluminismo seria a vitória definitiva da razão, pode começar a rever suas posições. E quem esperava que comportamentos supersticiosos da segunda metade do século 18 era coisa de um longínquo passado, verterá lágrimas amargas de decepção com o humano.

Em 1º de novembro de 1755, Lisboa foi destruída por um terremoto sem precedentes. A figura chave do iluminismo europeu do Marquês de Pombal cunhou a conhecida frase, mãe do pragmatismo na política: “alimentemos os vivos, enterremos os mortos”. A igreja e seus padres faziam autos da fé numa cidade destruída, com cadáveres insepultos, e a proliferação de doenças, além do desalojamento, fome e frio, e ainda afirmava que o terremoto era castigo de deus contra o governo de Pombal.

O governante Pombal mandou prender alguns religiosos e fez publicar um curto folheto explicando “As verdadeiras causas do terremoto de Lisboa”. Aqui se explicava que o terremoto era um fenômeno da natureza, imprevisível. Dentre as medidas tomadas, destacam-se o controle do preço dos aluguéis e dos alimentos, a fim de não permitir o sucesso de aproveitadores da desgraça alheia.

Pombal foi rapidamente acudido por ninguém menos que Immanuel Kant, com o seu “Notícias do terremoto de Lisboa”, cujo primeiro comentário apareceu no final daquele novembro de 1755. Impressiona a rapidez com que Kant tomou conhecimento do episódio, numa época em que as notícias demoravam a chegar, ainda mais entre Lisboa e Königsberg. O filósofo liberal idealista Kant ressaltava também a necessidade de se compreender a “história da Terra” para que os humanos pudessem lidar melhor com o seu mundo. Certamente, valeu-se de Spinoza, para quem a natureza não conhece regra fora dela mesma, e que era preciso conhecer o que a natureza oferece ao homem - como o frio, tempestade, a seca – ao invés de amaldiçoar estes acontecimentos. O mesmo deveria ser realizado para a compreensão das atitudes humanas, como a cobiça, a corrupção, a inveja. Em todos os casos, desde o século 17 que filósofos lutam pelo conhecimento do homem, e que este seja senhor de si mesmo, apoderando-se de sua capacidade de pensar. O homem é um ser genérico que necessita de mais do que comida e reprodução para sobreviver, exatamente porque o fato de possuir inteligência o difere dos demais animais.

Quando abdicamos da capacidade de usar a razão, ou a usamos para o mal, a resposta logo vem, na forma de tragédias mais violentas. É tudo que não precisamos agora. Quem dissemina mensagens, seja em 1755 ou em 2024, contra a razão, e apela aos instintos primitivos do homem, comete o mesmo crime: contra as vítimas e contra os que sobrevivem. Não se poder permitir que no século 21, após o acúmulo que experimentamos, deixemos a vitória do obscurantismo conduzir nossas decisões. Governos e sociedade, além de terem que enfrentar os efeitos perversos de desastres ambientais, terão que se dedicar também ao convencimento do uso da racionalidade. Pombal restaria impressionado se nos visse hoje, com as enchentes no Sul do Brasil. Arriscaria apostar as seguintes palavras: “de novo? Não aprenderam com 1755?”

 

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