A história do Ceará e do mundo desde 1928, narrada pelas lentes do acervo de O POVO
A história do Ceará e do mundo desde 1928, narrada pelas lentes do acervo de O POVO
No dia 24 de março passado relembrou-se os 179 anos de nascimento do Padre Cícero Romão Batista, o profeta do povo sertanejo, que incompreendido, injustiçado, foi duramente maltratado a seu tempo, justamente por aqueles que deveriam assomar como paladinos da Caridade cristã. As maldades cometidas contra o Padre Cícero chegaram, em alguns momentos, ao vilipêndio.
Nascido no Crato, depois de ordenado padre Cícero foi designado para cuidar das pouquíssimas almas na localidade de Juazeiro, encravada em lugar hostil da região caririense. Ali chegado, como que por predestinação divina, de logo entendeu - segundo ele por sonho - que daquela localidade não mais sairia e que os desejos de ser missionário em outras terras, antes aventados, sumiram totalmente de sua vontade por decisão de forças transcendentes.
Em 1889 ocorreram fatos extraordinários envolvendo a Beata Maria de Araújo e o então jovem Padre Cícero. O chamado "Milagre da Hóstia", não agradou à cúpula da Igreja no Ceará. Começou aí o calvário do vigário daquele lugarejo de gente pobre e sofrida. A hierarquia da Igreja, liderada em fins do século XVIII pelo Bispo Dom Joaquim José Vieira, não poupou o vigário da então pequenina Vila de Juazeiro, de grandes constrangimentos e muitas agruras. Ele sofreu as maiores agressões por parte de altos dignitários da própria Igreja, os quais, paradoxalmente, deram munição a posicionamentos de figuras interessadas na destruição do próprio rebanho do Cristo.
Mas, "Meu Padim Ciço", apesar de tudo, está consagrado como santo pela devoção do povo nordestino. Mesmo sem ter ascendido à glória dos altares por decreto canônico da Cúria Romana, é venerado pelas imensas multidões de sertanejos que a cada ano acorrem ao Juazeiro do Meu Padim Ciço em romarias em homenagem ao Taumaturgo do Nordeste. Por outro lado, foi escolhido o "Cearense do Século" em disputa com figurões da Política e da Economia em nosso Estado.
Passados quase cem anos de sua morte, apesar dos de muitos "sábios e entendidos" da hierarquia da Igreja Católica ainda titubearem na aceitação da santidade do Padre Cícero em razão de uma burocracia atrasada, não poucos são aqueles que compreendem a importância do homem religioso que ele foi, sobretudo de sua postura de obediente servidor da Igreja, que soube comportar-se com dignidade eclesiástica, não obstante as muitas perseguições de que foi alvo. Mais do que isto, compreende-se hoje nos meios eclesiais e fora deles que a atuação política de Cícero, em vez de prejudicá-lo configura um dado que o beneficia em um processo de reabilitação junto ao Vaticano. Ele foi essencialmente um pacificador numa terra de conflitos sangrentos entre coronéis que se digladiavam por poder político e dominação econômica. A atuação política do padre fez parte da ação pastoral que lhe coube por vocação e determinação que vem do Alto.
Padre Cícero foi profeta completo. Soube governar, soube admoestar, soube rezar, soube conduzir as levas de homens rudes dos adustos sertões nordestinos aos pés da Mãe de Deus das Dores. É importante, destarte, compreendermos essa mensagem de fé, de esperança e de decisão do Padre Cícero em servir ao seu povo não apenas por intermédio da oração, mas da ação concreta na sociedade de seu tempo.
24 de março de 1944
Ao contrário do que se poderia supor, o Padre Cícero não era um individuo impenetravel. Pelo menos, não foi assim que ele as apresentou aos nossos olhos, quando o avistámos em Joazeiro, em fevereiro de 1931. O nosso encontro foi relativamente curto - o suficiente para uma entrevista de jornal - mas, apesar da cautela do padre, em menos de uma hora haviamos fixado a seu respeito uma impressão que até hoje conservamos e que não deve andar muito longe da realidade.
Beirando, então, os 88 anos, o patriarca do Joazeiro apareceu-nos, nesse primeiro e único contacto, como ele deve ter sido efetivamente em sua debatida e nada misteriosa personalidade: um homem inteligente, de uma sagacidade pouco comum, revelada a cada trecho da palestra, mas destituido da cultura que quiseram atribuir-lhe os seus endeusadores. Ao lado disso, um misticismo deveras acentuado e um tanto ingênuo traindo-se aqui e ali na filosofia barata com que pretendia revestir a sua opinião sobre fenômenos politicos ou sociais sem nenhuma trancendência.
Nada de erudito, nada de profundo, mas bastante de sutil nas suas obervações, muito de arguto no que lhe parecia aconselhavel omitir aos jornalista para não despertar melindres ou ferir conveniências.
Em outras palavras: não conseguimos descobrir no Padre Cícero contornos intelectuais dignos de relêvo, mas, por outro lado, não encontrámos ali, do ponto de vista humano, quaisquer vestigios do homem perverso que os seus opositores pretendiam enxergar nele.
Fisicamente, é certo que tambem não possuia traços marcantes, a não ser os olhos irrequietos, e perscrutadores - aqueles "olhos pequeninos e movediços" - de que nos fala Lourenço Filho - o seu riso agitado e irônico e um constante movimento de braços, sobretudo do braço esquerdo, que ele não se cançava de agitar, ora puxando o lenço, ora ajeitando os óculos. Uns óculos de tartaruga esverdeados com que procurava aliviar-se da catarata impertinente que lhe restringia a visão, descolorindo-lhe o azul amortecido das pupilas octogenárias…
Quando nos aproximámos da casa do Padre Cícero, outra Joazeiro se desvendou diante de nós. Um verdadeiro contraste com a metrópole sorridente e clara que acabáramos de atravessar e que nos pareceu um protesto gritante do progresso contra a onda de fanatismo que teimava em invadir-lhe as portas.
Defronte da casa do padre - foi assim que o relatámos aos leitores do O POVO, em 1931 - defronte da casa, quatro ou cinco tendas, armadas ao sol e recheiadas de "santos", medalhas e rosários para vender, desafiavam o ambiente escuso com o berrante desencontrado das cores. Eram medalhas e santos de todos os tamanhos, inclusive o "santo" do Joazeiro.
Na calçada, ao longo de sete janelas e uma porta semi-cerrada, numerosos "romeiros" aguardavam, resignados, a presença do Pádre Cícero. Alguns esperavam do joelhos, resando, e um outro reclamava a demora, notadamente uma mulherzinha nervosa, franzina, maltrapilha, que não se cançava de chamar pela beata Mocinha, aoas gritos, no anseio mistico de beijar as mãos enrugadas e santas de "meu padrinho"...
Ao penetrarmos na sala de espera, depois de anunciados pelo porteiro, a beata, que ali estava a conversar com umas amigas, assustou-se com a nossa chegada e esqueirou-se manhosamente pelo corredor, para desaparecer como um fantasma…
Antes que esta viesse ao nosso encontro, uma contemporânea da beata Maria de Araújo contou-nos a seu modo um dos "milagres" do Padre Cícero, jurando, dedos em cruz, que vira a hôstia tingir-se de sangue ao ser depositada nos lábios da devota…
A boca rasgada num sorriso jovial, o Padre Cícero recebeu-nos cordialmente, com um largo abraço, conduzindo-nos imediatamente ao seu gabinete. Um gabinete muito simples, sem atavios de qualquer espécie e onde não conseguimos descobrir o menor indicio de que se destinasse ao homem de espirito que pretendia ser o velho e bondoso sacerdote.
Como tivessem decorridos poucos meses após o movimento revolucionário de 30, era natural que procurássemos impressões acerca dos acontecimentos nacionais:
- Padre Cícero, somos do O POVO e queremos uma entrevista sua. Algumas palavras sobre o momento brasileiro.
- "Não" - respondeu ele, de pronto, numa resolução que poderia afigurar-se definitiva. "Por ora não posso falar: estou de resguardo…"
Rimos da pilhéria e deixâmos que ele prosseguisse:
"Agora sou um mero espectador dos acontecimentos. Aprecio os fatos e olho as cousas com uma grande vontade de que tudo se faça como eu desejo".
E, iniciando sem pressentir a entrevista que solicitaramos:
- "A futura Constituição não deve ser atéa. O Brasil é uma nação católica e precisa viver com Deus. Sou partidário da Igreja unida ao Estado, porque sou católico, apostólico, romano, e me oriento pelo "Credo", que é o simbolo da Religião e da Fé. Deus é quem governa o mundo e os homens. Só o Criador é universal e absoluto".
- "E" agora - respondeu - o momento oportuno para se fazer um Brasil novo, com um futuro brilhante e cimentado em principios divinos".
Depois de interpelar o padre sobre Juarez Távora, a quem teceu rasgados elogios, incluindo-o entre "os elementos que Deus destacou para a realização de uma pátria nova e feliz", quisemos forçá-lo a manifestar-se sobre as autoridades depostas, com as quais ele compactuara, a-fim-de verificar até onde chegaria a sua lealdade.
Mas o taumaturgo não se deixou vencer pelo jornalista.
"Que pensa do sr. Washington Luiz e seu governo?" - perguntámos.
- "Não penso nada. Não quero emitir juizo sobre quem já morreu".
Quanto ao presidente Getúlio Vargas, foi esta a sua opinião:
"Desejava calar sobre o dr. Getúlio Vargas, porque estamos muito longe. Mas só tenho razões para julgá-lo um homem de bem. Já tive até relações com ele (ter relações com personagens evidentes era uma das manias do padre Cícero) tive até relações com ele por telegramas quando era ministro da Fazenda e mesmo quando foi presidente do Rio Grande. Desejo-lhe muitas felicidades e digo isso sinceramente, muito sinceramente".
Ha quem assegure que o patriarca do Joazeiro era um emérito conhecedor da História e um apaixonado por tudo quanto ocorria no estrangeiro. Não sabemos até onde se extende a verdade da primeira afirmativa, mas durante a nossa conversa, por várias vezes procurou arrimar-se em citações históricas e geográficas, com a mal disfarçada preocupação de mostrar-se erudito em tais assuntos.
Uma prova de sua bondade, de seu temperamento pouco afeito ás explosões do mal é a resposta que ele deu á nossa pergunta sobre a punição dos culpados pelso desregramentos da primeira Republica.
"Nessa matéria - disse - eu não sou bom professor. Teoricamente, sou pela punição. Mas na prática as cousas não saem certas. E a condenação inocente é preferivel perdoar, que é sempre melhor e mais agradavel."
Ao deixarmos o casarão medieval onde residia o Padre Cícero, era muito maior o número de "romeiros" que se comprimiam do lado de fôra. A onda se adensára bastante, para aumentar, talvez, a nossa desolação ante aquele quadro de miséria e fanatismo.
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