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Rachel de Queiroz 1910 - 2003
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A história do Ceará e do mundo desde 1928, narrada pelas lentes do acervo de O POVO

Rachel de Queiroz 1910 - 2003

Rachel de Queiroz deixou-nos. Partiu discreta e silenciosa, quase à francesa. Ou, antes, como uma autêntica sertaneja que não gosta de causar incômodos, nem comoção em torno de si. Talvez, a imagem mais adequada à tradução da natureza harmônica desse trânsito seja a de um grande caudal a desaguar placidamente no estuário da eternidade
RACHEL OITD_20031105aa01 (Foto: opovo e historia)
Foto: opovo e historia RACHEL OITD_20031105aa01

* desde 1928: As notícias reproduzidas nesta seção obedecem à grafia da época em que foram publicadas.

 

05 de novembro de 2003

Rachel não era apenas uma árvore frondosa que espalhou sombra, frutos e sementes ao derredor: constituía em si mesma um complexo sistema ecológico-cultural que alimentava, digeria e reproduzia brasilidade. Tudo isso, a partir de um olhar nativo que enxergava o universal com as lentes da regionalidade. Seriam essas, aliás, as características que iriam compor o código genético do O POVO, desde a sua primeira edição, quando a própria Rachel de Queiroz e Demócrito Rocha formataram, juntos, o cromossomo que lhe daria identidade.

Quando O POVO completou 60 anos de existência, em 1988, Rachel empreenderia uma re-visita mais do que reiterativa a esses fundamentos que ajudara a constituir, através da convivência profissional e intelectual com o fundador. Dessa vez, junto com Paulo Bonavides e outros integrantes do Conselho Editorial, elaboraria a Carta de Princípios do O POVO, positivando aquilo que já se constituía vivência consuetudinária. Essa ação refundante seria acrescida, dez anos depois, de um gesto não menos afirmativo: a subscrição simbólica da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no exato momento em que se completavam 50 anos da publicação desse importante documento que se incorporou a outros referenciais principiológicos de igual teor e valor universal, todos incorporados ao acervo referencial que orienta a política editorial do O POVO.

Assim, longe de nos deixar, Rachel de Queiroz se fará ainda mais presente, compondo, indissociavelmente, a maneira de ser do O POVO e a própria identidade cultural brasileira. Enquanto existir Brasil e literatura nacional, o nome de Rachel de Queiroz perdurará como parte indescartável do patrimônio cultural da Nação, cabendo-nos manter vívido o sentido referencial de identidade que elas nos legou.

Rachel de Queiroz - Editorial

Louvo o Padre, louvo o Filho,

O Espírito Santo louvo.

Louvo Rachel, minha amiga,

nata e flor do nosso povo.

Ninguém tão Brasil quanto ela,

pois que, com ser do Ceará,

tem de todos os Estados,

do Rio Grande ao Pará.

Tão Brasil: quero dizer

Brasil de toda maneira

- brasílica, brasiliense,

brasiliana, brasileira.

Louvo o Padre, louvo o Filho,

o Espírito Santo louvo.

Louvo Rachel e, louvada

uma vez, louvo-a de novo.

Louvo a sua inteligência,

e louvo o seu coração.

Qual maior? Sinceramente,

meus amigos, não sei não.

Louvo os seus olhos bonitos,

louvo a sua simpatia.

Louvo a sua voz nortista,

louvo o seu amor de tia.

Louvo o Padre, louvo o Filho,

o Espírito Santo louvo.

Louvo Rachel, duas vezes

louvada, e louvo-a de novo.

Louvo o seu romance: O Quinze

E os outros trê; louvo As Três Marias especialmente,

mais minhas que de vocês.

Louvo a cronista gostosa.

Louvo o seu teatro: Lampião e a nossa Beata Maria,

Mas chega de louvação,

porque, por mais que a louvemos,

Nunca a louvaremos bem.

Em nome do Pai, do Filho e

do Espírito Santo, amém.

Manuel Bandeira (do livro Estrela da Tarde, 1960)

 

Rachel de Queiroz 1910 - 2003(Foto: O POVO É HISTÓRIA)
Foto: O POVO É HISTÓRIA Rachel de Queiroz 1910 - 2003

Uma morte rápida e serena

A Escritora Rachel de Queiroz morreu ontem pela manhã, vítima de enfarte, aos 92 anos, em seu apartamento, no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Ela completaria 93 anos no dia 17 de novembro. A irmã dela, Maria Luiza de Queiroz Salek, contou que Rachel passou a segunda-feira bem, conversando. Ela foi encontrada morta às 6 horas. O velório foi realizado no salão dos Poetas Românticos da Academia Brasileira de Letras (ABL), casa que a recebeu no dia 4 de novembro de 1977 - foi a primeira mulher a ter lugar entre os imortais e ocupava a cadeira de número cinco. Quatro fuzileiros navais se mantiveram em volta do caixão prestando uma homenagem à escritora. Rachel se tornou madrinha dos fuzileiros na época em que morou na Ilha do Governador (zona norte do Rio).

O enterro, inicialmente marcada para ontem, foi transferido para hoje, às 9 horas (horário de verão), no cemitério São João Baptista, em Botafogo, para possibilitar aos familiares que moram no Ceará se despedirem de Rachel. Maria Luiza disse que o corpo não seria sepultado no mausoléu da ABL, mas sim ao lado do segundo marido de Rachel, o médico Oyama de Macedo, morto em 1982.

Maria Luiza acredita que a morte da irmã tenha ocorrido de forma serena. "Foi melhor assim, porque ela não sofreu. Perguntei na segunda-feira como ela se sentia e Rachel respondeu que só não estava melhor porque não estava no Ceará", afirmou. A irmã lembrou que Rachel queria voltar à sua fazenda, em Quixadá, antes de morrer. A última visita foi há um ano e meio. "Nunca me divorciei do Ceará", dizia Rachel.

A escritora já havia sofrido um derrame em agosto de 1999, tinha dificuldades de locomoção e era acompanhada por uma enfermeira. Em 2000, teve uma isquemia e, há dois meses, levou um tombo, mas, segundo Maria Luiza, o quadro clínico dela era bom. Até o fim de março, a escritora publicava crônicas semanalmente no O POVO e no jornal O Estado de São Paulo - ela ditava os textos e Maria Luiza digitava no computador. A irmã, que mora na Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade, ia diariamente ver Rachel.

O governo do Ceará e a Prefeitura de Quixadá decretaram três dias de luto oficial pela morte da escritora. O governador do Estado Lúcio Alcântara viajou ontem ao Rio para acompanhar o velório. A Universidade Federal do Ceará (UFC) também está de luto oficial de três dias. Assim como a ABL e a Academia Cearense de Letras, na qual Rachel ingressou em 1994.

Rachel de Queiroz 1910 - 2003(Foto: O POVO É HISTÓRIA)
Foto: O POVO É HISTÓRIA Rachel de Queiroz 1910 - 2003

 

Memorial de Rachel de Queiroz

"Acorda, literata! Olha que sol lindo", gritava a mãe, abrindo a janela do quarto da mais velha dos seis rebentos. A escritora da Rachel de Queiroz contava 17 anos quando a família varreu a então provinciana Fortaleza, à cata do sítio de veraneio, sonho antigo tornado real em 1927, depois que o casal Daniel e Clotilde engraçou-se com um certo "vale fresco e ventilado", dotado de açude, pomar e baixio de cana. Embora nascida no número 86 da rua Senador Pompeu, centro da cidade, foi no sítio Pici que a menina-moça adolesceu, míope e devoradora de livros, pinçando da estante títulos diversos que iam de Júlio Verne a Machado de Assis. As temporadas na fazenda do Junco, sertão de Quixadá, rendiam outras mil e uma noites de erudição informal. No alpendre, em noites de lua, o pai reunia a filharada para contar-lhes histórias dos reis da França.

Educação anárquica até o primeiro teste formal para o Colégio Imaculada Conceição, em Fortaleza. "Fui recebida por irmã Pauline (...) O teste começou: 'Rachelzinha, se eu fosse dar uma volta ao mundo, como faria? "A senhora quer ir pelo estreito de Magalhães ou pelo estreito de Panamá? Ela ficou impressionadíssima", escreveu ao jornal O POVO, em 1995. Precoce, a aluna fez-se normalista aos 15 anos, ingressou no jornal O Ceará aos 16, respondendo por um suplemento literário e antes de fechar os 19, convalescente de uma congestão pulmonar, driblou a vigilância da mãe para escrever o primeiro romance, madrugada adentro, sob a luz de um lampião. O Quinze foi escrito a lápis, sorrateiramente, em caderno de colegial, no assoalho da sala. Nobre desobediência, devidamente perdoada: ao invés de castigo, a 'literata' ganhou dos pais a quantia necessária para a publicação do livro que logo caiu nas mãos e graças de um dos fundadores da Padaria Espiritual, Antônio Sales.

O correio levou O Quinze mais longe. E a Fundação Graça Aranha, no Rio de Janeiro, tratou de premiá-lo. "Fiquei com o prêmio de romance, Murilo Mendes com o de poesia e Cícero Dias com o de pintura. Éramos ilustres desconhecidos e a partir daí deslanchamos", recordou. Não sem suspeita por parte dos renomados. Graciliano Ramos duvidou que uma moça pudesse escrever assim. Comprovada a autoria, mea-culpa e cara à tapa: ao longo de 60 anos, vieram mais seis romances, além de duas peças teatrais, dois livros infantis, seis de crônicas, um de memórias - escrito a quatro mãos com a irmã caçula, Maria Luiza -, e ainda o derradeiro, de culinária, que leva o nome da fazenda Não me Deixes, dileto retiro da escritora, em Quixadá, sertão cearense - última e indelével prova da ligação nunca interrompida com o estado-natal.

Rachel de Queiroz 1910 - 2003(Foto: O POVO É HISTÓRIA)
Foto: O POVO É HISTÓRIA Rachel de Queiroz 1910 - 2003

"O que ganho em minha terra curto muito mais do que em qualquer outro lugar", disse a O POVO, em 1994, quando ingressou na Academia Cearense de Letras. Carioca por adoção, a cearense que deu nome ao prédio onde morou, no Rio de Janeiro, jamais passou um ano sequer sem visitar Fortaleza. Em Quixadá, nas terras herdadas, seguiu o conselho do pai e, sob orientação do segundo marido, Oyama, também falecido, ergueu em 1955 a fazenda que hoje é reserva patrimonial e onde ainda se bebe água de pote. "Não me Deixes é minha pátria, meu ponto de referência", declarou a O POVO, em entrevista alusiva aos seus 90 anos. Os armadores para sete redes da casa alpendrada, as 13 janelas com parapeito onde graúnas, cancãns, galos de campina e corrupiões ainda podem descansar à vontade e o mobiliário construído com madeira colhida no próprio terreno ‘falam’ da anfitriã cujo maior prazer era reunir amigos e familiares sob um céu de estrelas tipicamente sertanejo para contar histórias e cozinhar.

Do alto de seus quase 93 anos, a escritora que costumava renegar suas crias e o próprio ofício “escrevo porque é meu ganha-pão”; “não queria ser lembrada por nenhum livro meu” -, fez o amigo e escritor Arnaldo Niskier acreditar que estaria às voltas com um novo romance, à revelia dos lapsos de memória decorrentes de um AVC e de movimentos comprometidos após uma isquemia cerebral. “Já estava finalizando o livro e o título seria ‘Noite de Luar’, adiantou ele, ontem pela manhã, por telefone, do Rio de Janeiro. Cúmplice inseparável, a irmã Maria Luiza, tratou de desmentir: “Ela começou a pensar sobre um novo romance, mas não deixou quase nada escrito, de modo que não tem como ser publicado”. Fonte segura. Afinal, era para ‘Izinha’ que até o último mês de março Rachel de Queiroz ditava as crônicas semanalmente publicadas em jornais de Fortaleza, São Paulo, Brasília e Belo Horizonte. Alegando cansaço, foi como cronista e ensaísta que ela por último se aposentou, após longo período de serviços prestados à imprensa - colaborou com O POVO desde sua fundação, em 1928, e provocou alarde com seus artigos literários e políticos na antológica Revista O Cruzeiro, tornando nobres suas contracapas.

Ontem pela manhã, a escritora já não quis levantar-se para ouvir, como fazia questão, a leitura dos jornais. Também não pediu o café passado no pano, a seu gosto. Quis dormir mais um pouco. Logo ela, que sempre reclamou de insônia e na noite anterior falara a valer sobre o aniversário de 93 anos e a vontade de fugir para o Ceará, tão logo suas condições de saúde permitissem. Logo ela que, reconhecidamente bem-humorada, dona de riso aberto, gabava-se de merecer entrar no Livro dos Recordes só por causa de seus seis deslocamentos de retina. Logo ela que dizia não acreditar em Deus nem na imortalidade da alma, apesar dos santos nas paredes e do retrato autografado em latim por Padre Cícero. Logo ela que morria de saudades do marido Oyama e evitava falar na morte precoce da filha Clotilde, de septicemia, aos dois anos. Pois simplesmente tirou um de seus cinco óculos, recostou a cabeça no travesseiro e não mais acordou.


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