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O mito da razão técnica
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Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris I. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador do Núcleo de Cidadania, Exclusão e Processos de Mudança (Nucem – UFPE)

O mito da razão técnica

Com a crise da sociedade salarial as ideologias de direita e de esquerda se confundem, irrompendo na superfície da politica emoções, desejos e fantasias incontroladas
Tipo Opinião
Paulo Henrique Martins, professor da UFPE e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas) (Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Paulo Henrique Martins, professor da UFPE e ex-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas)

O imaginário pré-capitalista desenhava o convívio humano a partir de uma complexa articulação entre criações técnicas e narrativas míticas. Sócrates, Aristóteles e outros filósofos gregos tentaram substituir o pensamento mágico pelo racional para afastar as sombras da barbárie e promover o culto da inteligência, da ordem e da beleza. Mas o destino provou que a Razão também poderia se transfigurar num mito. A moderna ciência ocidental de inspiração cartesiana cultivou o mito da técnica, atualizando a feia figura de Hefesto, divindade do fogo, do ferro e da metalurgia. A modernidade passou a glorificar um novo tipo de poder fundado na extração mecânica e predatória de energias naturais e humanas. A modernização ocidental emergiu como uma lógica extrativista e colonial, como um pesadelo.

O lado catastrófico da modernização técnica foi revelado por Adorno e Horkheimer no livro clássico Dialética do Esclarecimento, de 1944. Para eles, o fracasso da modernidade ocidental como programa de emancipação não se deveu apenas ao uso errado da técnica no extermínio de seres humanos, mas ao fato de que a própria modernidade se tornou um mito perigoso. A técnica racional se revelou então como justificativa da desumanização, como mística da crueldade. Neste século XXI este processo se aprofundou. O mito da razão técnica desfez os limites normativos da prudência, levando a sociedade de consumo a transformar o celular e a internet em razão técnica tão essencial como o ar que respiramos.

Nas asas do pesadelo a ciência perdeu progressivamente seu status privilegiado de instância promotora da verdade. Assistimos o retorno do recalcado pré-capitalista, aquele movimento psíquico que Freud atribui à liberação inevitável de pulsões reprimidas. Com a crise da sociedade salarial as ideologias de direita e de esquerda se confundem, irrompendo na superfície da politica emoções, desejos e fantasias incontroladas. Assistimos então o crescimento de instituições que cultivam a idolatria e que são movidas por impulsos difusos de vingança e revanche.

 

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